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Daniel Trielli

Investigação jornalística com tecnologia não é crime

Esmiuçar algoritmos governamentais ou de empresas será uma forma essencial de apuração

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Daniel Trielli

Jornalista e pesquisador em mídia, tecnologia e sociedade, é doutorando na Universidade Northwestern (EUA), onde integra o 'Computational Journalism Lab'

Há muito o que desempacotar sobre o depoimento da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, à CPI da Covid, mas em certo ponto há uma tentativa assustadora de considerar um trabalho jornalístico válido e valoroso como crime. O suposto hackeamento do aplicativo TrateCov, citado pelo ex-ministro Eduardo Pazuello na semana passada e por Mayra Pinheiro nesta terça-feira (25), nada mais foi do que uma técnica de apuração jornalística já usada em Redações do mundo todo.

A "Capitã Cloroquina" até tentou contemporizar alegando que não houve hackeamento, mas sim "uma extração indevida de dados". Mas isso não anula que, momentos antes, ao ser questionada sobre quem teria cometido o tal "crime cibernético", deu o nome de Rodrigo Menegat, jornalista que fez uma apuração válida, legal e imensamente valiosa para a sociedade. Ela ainda disse que Menegat só não conseguiu alterar o aplicativo porque a plataforma é "muito segura". Mas nada disso representa a realidade.

O que Menegat fez não foi extrair dados indevidamente ou tentar alterar nada. Ele só inspecionou o código-fonte do aplicativo TrateCov, que estava disponível para todos os usuários de internet no site do Ministério da Saúde. A diferença é que, no caso do TrateCov, o código-fonte não só revelava a aparência do site do ministério, mas também como o aplicativo funcionava. Bastava conhecimento técnico para ver e copiar esse código. Com essa cópia em um repositório, é possível simular como ele funciona.

E porque ele fez isso? Porque, assim, Menegat fez um tipo de apuração jornalística que cada vez mais cresce no mundo, a investigação algorítmica ("algorithmic accountability", na versão em inglês). Em um mundo em que todos os tipos de algoritmos regulam e influenciam nossas vidas —decidindo não só o que você consome nas redes sociais ou ouve no aplicativo de música, como também como a Receita Federal determina quem cai na malha fina—, é essencial que jornalistas cubram essa área. É um trabalho que exige conhecimento tecnológico, mas também discernimento jornalístico para entender as repercussões que essas tecnologias têm em nossas vidas.

No caso do TrateCov, o jornalista fez uma das modalidades clássicas de "algorithmic accountability": a replicação e simulação do uso de um aplicativo. Por meio de simulações, o jornalista pode aferir que tipo de recomendação o aplicativo faz, e, ao revelar isso ao público, levanta a questão sobre se a plataforma faz escolhas apropriadas. Quem estuda jornalismo computacional pode citar dezenas de exemplos premiados de jornalismo que fizeram a mesma coisa nos Estados Unidos e na Europa.

Logo após a secretária acusar o jornalista de crime cibernético, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) pergunta: "Que interesse essa pessoa teria em hackear um sistema que era gratuito?". "É a mesma pergunta que eu faço", ela responde. "Que interesse tem alguém no contexto de uma doença tão grave de trazer um prejuízo às pessoas que poderiam ser beneficiadas?" Mas o prejuízo não foi provocado pelo jornalista, mas sim revelado por ele. Por causa do trabalho de Menegat, descobrimos que o TrateCov servia praticamente para uma coisa: receitar medicamentos sem comprovação contra uma pandemia que matou mais de 450 mil brasileiros.

E para responder a pergunta enviesada da "Capitã Cloroquina": o interesse do jornalista não é causar prejuízo, mas sim revelar informações de interesse público. Se essa informação está escondida em um código de computador, cabe ao jornalista ir apurá-la ali também. O uso de ferramentas tecnológicas para investigar algoritmos governamentais ou de empresas privadas vai ser uma forma essencial de jornalismo daqui para frente. É muito perigoso que poderes políticos tratem esse tipo de atividade como clandestina.

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