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Leandro Muniz

Movimento ou golpe?

Palavras também sofrem com nosso surto psicótico

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Leandro Muniz

Roteirista, dramaturgo e diretor

Além da urna eletrônica e do fígado do pessoal que tomou cloroquina, quem anda bastante maltratada é a língua portuguesa.

As palavras e os seus significados têm sofrido as consequências desse surto psicótico chamado Brasil. A palavra “liberdade”, por exemplo, agora é usada pelos fãs da ditadura. A palavra “Deus” foi sequestrada, mas não em vão. É usada para eleger, explorar, na topada do mindinho e, pasme, até em orações.

Recentemente, Fernando Henrique Cardoso usou a palavra “movimento” para se referir ao golpe de 1964. Talvez tenha sido um engano numérico. Golpe de 64. Movimento de 69. Faz mais sentido. Quanto mais a idade avança, maior a saudade de se fazer um movimento de 69.

Pedro Bial, numa entrevista antiga, afirmou que “há quem chame de golpe, há quem chame de revolução”. Sim. E há quem chame de “mito”, e há quem chame de “jumento”. Nessa dança semântica, eu trocaria facilmente um “no tocante à” por qualquer errinho simpático de concordância. Mas, afinal, qual a diferença entre movimento e golpe?

No dicionário, movimento é o ato de mover-se. Já mover-se para trás seria ditadura ou “moonwalk”. Golpe pode ser o choque de um corpo com o outro, pancada. Deixa marcas físicas, exceto o golpe do falso sequestro, aquele do (leia sofrendo) “mãe, me sequestraram!” —que era tão bem interpretado que uma vez eu caí mesmo sem ter filhos. Golpe tem a ver com ditadura, tortura e morte. Já o movimento é sexy. Todo mundo sabe disso.

Muitas vezes movimentos são inspiradores, como a Tropicália. Outros não colam tanto, como o movimento contra as tomadas de três pinos e o tão discriminado movimento dos usuários de Crocs.

No movimento do axé você compra seu ingresso, faz sua “coreô” e dança na rua até o amanhecer. Já no golpe do axé invadem sua casa tocando Gera Samba, te obrigam a vestir um abadá e apontam uma arma, dizendo: “Rebola até o chão, ordinário!”. Percebe a diferença?

Todo golpe quer parecer movimento ou revolução, mas se entrega nos slogans. Não dá para comparar “liberdade, igualdade e fraternidade” com “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Ou comparar “eu quero votar pra presidente” com “eu sou favorável a tortura, talquei?”. Golpes com lindos movimentos e apoio popular, só os do Anderson Silva.

Pessoas se aglomeraram em meio a uma pandemia para pedir ditadura e liberdade, juntas. É como dizer: “Quero ser livre para ser torturado e morto quando eu bem quiser!”. É um misto de burrice com... Burrice. Já dizia o famoso samba-enredo: “Liberdade, liberdade, AI-5 sobre nós!”.

Seria mais justo criar um novo vocabulário e aglomerar não as pessoas, mas as palavras. Talvez isso nos ajude a alcançar alguns resultados mais precisos. “Revolugolpe”, “golpeachment”, “movimorte”, “colapsalles”, “familícia”, ”genocidadão”, “golpesão” (esta é para os que sentem tesão por torturador).

Mito + jumento = “jumito”. Pronto, você já sabe de quem se trata. Do “presidoente Bolsorona”.

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