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Fernando Capez

O jogo do abuso de autoridade: aliado da mentira e da corrupção

Fazer da desgraça alheia pedestal também ajuda os verdadeiros culpados

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Fernando Capez

Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, é doutor em direito e presidente do Procon-SP

Era uma vez um punhado de agentes públicos travestidos de autoridades que queriam sair do anonimato. Seu plano: envolver falsamente o nome de personalidades públicas numa investigação de estelionato.

O momento era propício com a Lava Jato estampada em todas as mídias. Era só pegar carona. Havia um detalhe: o fato era de atribuição da Polícia Federal e não envolvia nenhuma personalidade conhecida. Era mais um caso de rotina.

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O procurador e presidente do Procon-SP, Fernando Capez - Eduardo Anizelli - 12.jul.18/Folhapress

Para iniciar a partida, faltava combustível midiático. Ensaiaram, então, uma jogada desleal: fazer o maior estardalhaço possível, dar várias entrevistas e, depois, enviar a confusão armada à Polícia Federal. Em seguida, bastava criar um discurso bonito para justificar a lambança. Pronto. O jogo poderia começar.

Logo no início da partida, os holofotes cegaram os jogadores, que cometeram a primeira falta grave: pouco acostumados à investigação científica, os brucutus se deixaram gravar por uma testemunha que tentavam coagir. A testemunha estragou o jogo. Eles não iam mais ficar famosos. O áudio vazou para uma rede de televisão. Começou a ruir a farsa. Inspirados no “Leão da Montanha”, desenho animado de Hanna Barbera, logo buscaram uma saída pelos lados. Remeteram, então, o imbróglio para a Polícia Federal.

Um amontoado de papel não digitalizado que forçou a PF a recomeçar do zero. A investigação federal concluiu: os nomes das personalidades foram usados indevidamente. E agora? O jeito é esticar a farsa e manter aquecidas na imprensa apurações paralelas contra autoridades com foro privilegiado.
Ufa! Boa jogada. O tribunal recomeçou a ouvir as testemunhas. Uma CPI foi instaurada. Mas que pena, deu tudo errado: a verdade apareceu nos vários depoimentos (“sessão de tortura psicológica”; “botaram palavras na minha boca”; “depois de várias coações, resolvi gravar”; “sofremos coação para mentir”).

Os maus agentes fraudaram provas, corromperam a verdade e mancharam suas instituições com a nódoa de suas vergonhas. Era então chegada a hora de desfazer o circo e arquivar aquela joça que um dia ousaram chamar de investigação e à qual tiveram o desplante de batizar com nome pomposo. Nome que sugeria luz, quando, na verdade, agiam nas trevas da ilegalidade.

Hora de apitar fim de jogo. A mentira perdeu para a verdade. Arquivamento pronto para ser assinado. Vem então a última reflexão: “Arquivar agora? Depois de todo esse escarcéu? Não! Rasga logo esse arquivamento, às favas com a convicção, vai lá e prepara uma denúncia”. Estique essa corda. Deixe o desgaste para o Judiciário. Denúncia formulada e forçada, agora é hora de botar a mídia e pressionar.

Deu zebra! O desembargador é independente e tem coragem. O lobby em grupo para mendigar o recebimento da falsa acusação não funcionou. O magistrado conhecia o processo e as provas. Lá vem o despacho: “a denúncia não passou de falaciosa tentativa de se protrair no tempo a ruína política de uma liderança e a destruição da imagem pública de um inocente”. Houve outros votos: “as testemunhas sofreram coação”; “não se constata lastro probatório mínimo”; “testemunhas e suspeitos foram coagidos a mencionar o envolvimento”; “unânime isenção de qualquer participação”.

O processo foi trancado. A aventura acabou. Não deu! Estava tudo tão bem montado, mas só faltou uma coisa: sua excelência, o fato! Mesmo com todo o aparato da mídia e respaldo dos superiores, não deu para transformar a mentira em verdade. Pior. O VAR fez a mentira cair antes da prescrição dos abusos.

Agora precisam apostar na própria impunidade e torcer para que as coações sejam varridas para debaixo do tapete. Aí é só ter cuidado e tentar de novo. Fazer da desgraça alheia pedestal para a própria vaidade pode até ser um atalho para o sucesso, mas provoca injustiça e ainda ajuda os verdadeiros culpados. A corrupção agradece. Agora foi gol contra! Em uma democracia séria eles deveriam receber cartão vermelho. Quem sabe um dia ainda viram heróis.

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