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Renato Janine Ribeiro

A Folha cobre corretamente o governo Bolsonaro? NÃO

Engajamento é menor do que no fim da ditadura e na era Collor

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Renato Janine Ribeiro

Professor titular de ética e filosofia política da USP, é presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e ex-ministro da Educação (governo Dilma, 2015); autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

É difícil responder “não” à questão formulada, mas foi o convite que recebi. Direi então o seguinte: o problema da grande mídia brasileira frente ao governo Jair Bolsonaro não está tanto nela, mas no objeto a cobrir. Temos um governo que sistematicamente se opõe a todos os valores positivos da humanidade, os que emanam das revoluções inglesa, americana e francesa. Ele pode ser extremamente inepto, mas escolhe criteriosamente onde e como ser inepto.

Tomo um exemplo que, ante o meio milhão de mortos pela Covid-19, é até pequeno: a liquidação da biblioteca da Fundação Palmares, num ato que lembra as queimas de livros efetuadas pelos nazistas. Este assunto, sozinho, demandaria dias e dias de artigos e editoriais —e a Folha ficou aquém disso. A cobertura e a denúncia deveriam ser ininterruptas. Mas há jornalistas suficientes para fazer isso?

Porque o governo “passa a boiada”. Enquanto olhamos para um lado, ele multiplica ações das quais não sabemos se resultam da ignorância ou da maldade.

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O professor da USP e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro - Mathilde Missioneiro - 4.fev.20/Folhapress


O presidente não tem o menor pejo de reunir 6.661 motociclistas —o que seria 0,5% dos veículos motorizados de duas rodas registrados na cidade de São Paulo— numa festa que custou R$ 1,2 milhão aos cofres públicos. E isso sem ter visitado hospitais, sem ter prestigiado médicos e enfermeiros estressados pelo combate à Covid. Dá para cobrir tudo isso?

Mas sinto falta de mais, sim. Sinto falta de mais cobertura, inclusive quantitativa, das manifestações contra o governo. Também falta cobertura da vida (e da morte) nas periferias, no interior, nos demais estados. Faltam dados e narrativas personalizadas do desastre humano que hoje assola o Brasil.

Também sinto falta de contundência.

A Folha teve um engajamento crucial em dois momentos decisivos da nossa história: no fim da ditadura e na destituição de Fernando Collor. Mas a crise atual é pior do que aquelas duas. A ditadura fazia mal ao país, mas estava terminal. Collor teve rompantes autoritários e fez um mau governo, mas que não se compara, em ruindade, ao presente.

Grave, ainda, é que este governo liberou o armamento de seus sequazes. O apelo a um machismo, hoje tornado vulnerável graças aos avanços da igualdade em nosso meio social, somado a um espírito belicoso que multiplica ameaças de golpe e de morte, é mais perigoso do que nossa imprensa reconhece. Se o governo perder as eleições, uma guerra civil é possível.

Acredito que seria preciso cobrir mais. Jornalistas têm escrito reportagens e livros admiráveis, mas a informação é insuficiente sobre tudo o que hoje prejudica nosso futuro.

E penso que seria preciso reconhecer os problemas na origem de um governo que, primeiro, deve sua eleição às ações ilegais que bloquearam a candidatura do nome favorito no pleito de 2018 —Lula—, e, segundo, declarou ter gasto, em sua campanha eleitoral, um valor baixo demais para ser crível. Seria preciso rever essa injustiça de base, que nos trouxe o governo mais inepto de nossa história.

Finalmente: entendo que não só a Folha, mas a imprensa em geral, deveria tomar posição editorial mais forte. Hoje vivemos um quase colapso dos órgãos do Estado que servem à população, como saúde e educação (enquanto os órgãos de poder do Estado vão bem, obrigado), e também uma quase destruição da sociedade e do próprio país. Sobreviverá o Brasil a um segundo mandato dessa qualidade? Viverá nosso país até 31 de dezembro de 2022? Não são perguntas retóricas.

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