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Cecilia Mello, Flávia Silva Pinto e Júlia Dias Jacintho

A mulher transgênero, a Lei Maria da Penha e o feminicídio

Todas devem ser protegidas, tal como se veem ou se inserem na sociedade

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Cecilia Mello, Flávia Silva Pinto e Júlia Dias Jacintho

Advogadas

Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, na contramão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, negou a concessão de medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha em razão de a vítima ser transgênero e não pertencer ao sexo feminino no sentido biológico. O efetivo reconhecimento de direitos integra um processo de construção permanente, e tem sido árdua a trajetória do direito à própria identidade social e sexual.

Resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre a questão é um marco legal no reconhecimento dos direitos LGBTQIAP+ como parte integrante dos direitos humanos.

Passo a passo vem prevalecendo a definição de identidade de gênero assinalada pela Corte Interamericana: “(...) o sexo e o gênero devem ser percebidos como parte de uma construção identitária que resulta da decisão livre e autônoma de cada pessoa, sem que se deva estar sujeita à sua genitália”.
Longe de serem imutáveis, são traços que dependem da apreciação subjetiva de quem os detenha, residindo na construção da identidade de gênero autopercebida e diretamente relacionada com o livre desenvolvimento da personalidade, da autodeterminação sexual e do direito à vida privada (STF/ADPF 457).

No Brasil, país que lidera o maior número de homicídios de transexuais no mundo, a Lei Maria da Penha surgiu justamente diante da necessidade de coibir e prevenir a violência de gênero no âmbito doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto. E a toda mulher devem ser assegurados meios e oportunidades para viver sem violência, independentemente de orientação sexual.
O conceito de mulher trazido pela Lei Maria da Penha suplanta o perfil biológico binário. E a identificação das destinatárias da lei deve abarcar a compatibilidade ao gênero com o qual a vítima se identifica psicologicamente, fisicamente e/ou socialmente.

Mas o direito tem sido recalcitrante na solução dos problemas enfrentados pelos transgêneros. Em 2018, o STF entendeu que os transgêneros podem alterar nome e gênero no registro civil, independentemente de cirurgia de transgenitalização e de decisão judicial. O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, definiu e simplificou esse procedimento, que pode ser requerido perante os cartórios de todo o país pela própria pessoa. Mais do que isso, desde 2008 o SUS oferece cirurgias de redesignação sexual, além de tratamento multidisciplinar no processo transexualizador. Assim, há um flagrante descompasso entre o reconhecimento desses direitos e a descabida discussão da aplicação da Lei Maria da Penha à mulher transexual.

No Senado, tramita um projeto de lei (PLS 191/2017) que prevê a ampliação do alcance da norma para que, expressamente, seja consignada a possibilidade de mulheres transgênero e transexuais contarem com a proteção da Lei Maria da Penha.

Quando chamado a definir o alcance da lei às mulheres transgênero, o entendimento majoritário do Poder Judiciário aponta o critério psicológico (como a pessoa se identifica) como o mais adequado.

Outra vertente é a discussão do tema a partir da modificação do Código Penal, que passou a prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. O texto é restritivo ao demarcar que a vítima apenas pode ser do “sexo feminino”. A necessidade de extensão da qualificadora à mulher transgênero é premente.

A inovação legislativa para a inclusão do feminicídio ao Código Penal é recente, mas a jurisprudência segue em uma construção positiva, inclinando-se no sentido de admitir a mulher transgênero como vítima do crime de feminicídio.

“A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la” (STF/ADI 4.275). Portanto, a Lei Maria da Penha e a qualificadora do feminicídio devem proteger a vítima mulher transgênero, tal como ela efetivamente se vê e se insere na sociedade.

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