Até poucas semanas, o motivo principal de não tomarmos as ruas era a Covid-19. Agora, assumimos as avenidas justamente em função da pandemia e do tempero fétido que as ações governamentais produziram neste cenário. Mas, se já era lamentável e desastroso desde sempre, o que mudou?
A tosquice e o tom desqualificado das falas presidenciais se mantiveram. As ações negacionistas, o cinismo característico, as ofensas à imprensa, às mulheres, à comunidade indígena, a indecente postura de exonerar quem aponta as falhas do governo, os crimes ambientais, o incentivo a tirar a máscara e a aglomerar... Nada novo. Aliás, de uma coerência a ser reconhecida. Jair Bolsonaro de fato deu ao Brasil o que prometeu: armas, "agro pop" e o mito do messias ordinário que se esconde na imagem de não político, um outsider sem partido, que não é identificado com o sistema padecido de falta de credibilidade.
A despeito da coerência, alguns elementos fizeram —enfim— esgarçar os inacreditáveis índices de aprovação do governo. Podemos começar pelo que seria o mais sutil dos itens: o fraco desempenho na economia. Mesmo com o recente aceno de queda do dólar após a longa era do deboche de que as empregadas domésticas que antes iam para a Disney deveriam ir para Foz do Iguaçu (que, a julgar pela aridez atual, teve suas águas evadidas em sinal de rebeldia), as pessoas brasileiras sabem o preço do que comem e vestem.
A piada de que a inflação estava na casa dos 4% perdia seu aspecto humorístico na compra da cesta básica. Se itens básicos aumentaram em torno de 29% em alguns estados, como a inflação foi de 4%, gente letrada em números?
Além do frustrante desempenho na economia, a CPI da Covid escancarou o óbvio: os crimes cometidos por negligência, os estratagemas nas quais o governo se colocou em uma disputa infantil com a ciência, as prioridades que explicitamente não foram as vidas de brasileiras e brasileiros. Homicídios que não podiam mais ser disfarçados. Desrespeito, deboche. Tudo em meio ao luto de milhares de famílias do país. A dor, da forma mais violenta possível, pode ter sido parte do alerta que levou a enxergar o tamanho da lama.
Cabe complementar que, desde a saída do ex-ministro Sergio Moro, a narrativa da moral ilibada e da ética incorruptível do governo estava desgastada. Mas o golpe final ao narcisismo cínico moralista desse grupo é que o mal da corrupção não poderia mais ser identificado como inimigo, apenas.
O quintal, definitivamente (e finalmente), aparece como sempre esteve: sujo. O caso Queiroz/Frederick Wassef, o cheque na conta da Michele, o envolvimento com as milícias... Nada parecia abalar a ilusão na qual se pautou a eleição do "mito": a de que a corrupção seria vermelha. A volta de Lula, os abusos criminosos de Ricardo Salles, a recém-denúncia de corrupção na compra da Covaxin, somados, trouxeram elementos para derrubar a bandeira da moral “limpa”.
E chegamos ao componente que faltava para o impeachment, que adveio dessa combinação corrosiva: população em luto, economia frágil, corrupção explícita, divergências internas e quedas de símbolos, além da vacinação que começa a atingir lentamente uma parcela da população, tornando mais possível as manifestações. A orgia das ruas enfim chegou. O gozo que não era possível até há pouco. São as ruas que tiram as lideranças do poder. Impeachment, seja bem-vindo! Nos vemos neste sábado (3).
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