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Daniel Wei Liang Wang

Sergio Moro e a liberdade acadêmica

Divergências à parte, ex-juiz reúne credenciais para evento em que foi vetado

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Daniel Wei Liang Wang

Professor de direito da Fundação Getulio Vargas (SP)

Existem riscos à liberdade acadêmica no Brasil. Cientistas são ameaçados por demonstrarem a ineficácia da cloroquina para tratar a Covid-19 e professor é processado criminalmente por apelidar o procurador-geral da República de “poste”, além do cerco sistemático que o governo Jair Bolsonaro tem feito contra as universidades públicas. Muito graves, nesses casos, são o desvio e o abuso no uso de poderes do Estado.

Em qualquer contexto, é importante a valorização radical da liberdade acadêmica. Ela é propulsora do desenvolvimento e um dos alicerces da sociedade democrática. Por isso, também os acadêmicos, que não exercem poder público, têm de ser radicais em relação a ela.

Esse pressuposto ajuda à reflexão sobre o movimento recente de professoras e professores para impedir a participação do ex-ministro Sergio Moro em evento do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (​Conpedi). Embora houvesse breve menção à sua falta de produção científica, a principal causa do repúdio parece ter sido sua atuação como juiz nos processos criminais do ex-presidente Lula.

Compartilho das críticas de meus colegas a Moro como juiz e político. Porém, tenho dificuldade em entender como o ethos acadêmico se compatibiliza com a defesa da exclusão sumária de pessoas de eventos científicos. Para mim, esse ethos requer que se separe a pessoa de suas ideias. Não por acaso, revistas acadêmicas bem reputadas trabalham com o formato de revisão cega —quem avalia um texto não sabe quem o escreveu. Assim como o prestígio de uma pessoa não se traduz na aceitação automática de suas ideias, a desconfiança ou desapreço tampouco são boas razões para impedir sua participação em foros de debate.

O debate, com informações e ideias sendo trocadas livremente, precisa ser radicalmente plural e tolerante. Não só por questão de princípio, mas porque, para ser sempre vibrante e útil, o ambiente acadêmico supõe muita abertura e divergência. Isso permite testar, afinar, comparar e corrigir ideias.

Por mais que sejam fundadas as críticas a Moro, ele tem titulações acadêmicas e experiência no tema da mesa em que participaria. Desconfiar dele seria motivo para ouvi-lo e questioná-lo. Deixar de ouvir alguém é perder a oportunidade de conhecer e debater, com sinceridade e severidade. É isso que dá sentido a eventos acadêmicos.

É compreensível que, sobretudo em período como o atual, muitos acadêmicos busquem uma atuação política mais incisiva. Contudo, a academia não pode enfraquecer seu ethos de abertura e tolerância, que é a base de sua legitimidade para intervir no debate público. Critérios políticos, independentemente de onde estejam localizados no espectro ideológico, ou discordância quanto a comportamentos anteriores, não são bons para informar decisões acadêmicas sobre, por exemplo, publicação de artigos e participação em eventos.

O compromisso com a liberdade acadêmica (assim como com qualquer liberdade) requer sua defesa em relação a pessoas de quem desconfiamos, discordamos ou não gostamos.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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