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Leonardo Goldberg

Sobre saber morrer em uma pandemia

Literatura costuma dar pistas para que lidemos com o terror da surpresa

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Leonardo Goldberg

Psicanalista e doutor em psicologia (USP), é autor de ‘Das Tumbas às Redes Sociais - um estudo sobre a morte e o luto na contemporaneidade’ (Benjamin Editorial) e 'O Sujeito na Era Digital: ensaios sobre psicanálise, pandemia e história' (Almedina, 2021)

Há uma expressão corrente no português, que deriva de uma famosa canção popular, e diz que “é preciso saber viver”. Se sabemos que a poética diz alguma coisa daquilo que paira como uma lógica subjacente ao nosso cotidiano, essa passagem revela um desejo comum ao ser humano: o de produzir um manual programado para a vida. Talvez não saibamos de nada, mas desconfiamos de tudo. Apesar da surpresa, pestes devastadoras são uma constante da grande história. Seus efeitos na cultura nem sempre aparecem de forma linear, mas estão pulverizados na literatura, arte, história e política.

Freud se depara com um elemento universal em sua escuta clínica e localiza na obra "Édipo Rei", de Sófocles, um exemplo importante da mensagem sobre a interdição do incesto como marcador do desejo do homem. Mas essa mensagem só é revelada a partir do momento no qual uma peste irrompe em Tebas. Seus cidadãos, diante do terror da doença, demandam uma resposta do soberano.

O Decamerão, de Boccaccio, é uma resposta diante da surpresa, do arrebatamento produzido pela peste negra na Europa. Mais que uma resposta, é um deslocamento da moral espiritual e do idealismo religioso para a moral terrena, para a estética dos desencontros amorosos e dos desejos impossíveis. Aliás, o agrupamento, o isolamento dos moços e das moças, é uma verdadeira orgia linguageira enquanto resposta ao flagelo que acabava com Florença. Bem, da "Íliada", passando por Gabriel Garcia Marquez até Albert Camus, há uma verdadeira literatura pandêmica. Em outras palavras, o mundo conta, para os dispostos a ler, com inúmeros manuais sobre como lidar com a peste.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro por muito tempo colocou em suspeita uma política que desse conta do isolamento social. Ele não precisava de muito: era só abrir “A Peste”, de Camus, e se inspirar no prefeito de Oran, que, igualmente reticente, cedeu seus ouvidos aos médicos da narrativa.

Aquilo que se repete demasiadamente na literatura não se repete por um mero acaso —esses temas costumam dar pistas para que lidemos com o terror da surpresa. Mais do que pistas, essas repetições tentam formar um anteparo, uma contrapartida diante daquilo que colapsa nossas equações para a vida. Por isso escrevemos tanto sobre desencontros amorosos, guerras, pandemias, sentidos para a vida, traições, ambições e pequenezas.

Desse elenco de temas, alguns oferecem esquadrinhamentos mais delineados e outros não. Há um não saber sobre a morte, um enigma que é absolutamente irrepresentável.

A primeira verificação de que alguém amado está morto é a falta de resposta. De certa forma, a resposta é uma garantia de presença, e a falta dela produz desolamento. A segunda verificação é que aquilo que assimilamos do outro e que se transformou em nacos de memória deverá ser sacrificado. Se o outro não responde, deveremos sacrificar aqueles traços que diziam respeito a ele. Há uma torção nesse ato: passamos daquele que aguarda o tempo para o agente de um sacrifício. Aliás, um sacrifício a mais; afinal, sacrificamos esse pedaço do outro que era igualmente meu e repousava na sagrada garantia de resposta.

Da ética para a política há um salto, e devemos ficar atentos aos soberanos contemporâneos e suas formas de honrar nossos mortos. Uma pandemia exige esforços macroscópicos no que diz respeito a constatar aquilo que perdemos quando perdemos aqueles que se foram e o que devemos sacrificar a partir daí.

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