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José David Urbaez Brito

Brasil tem condições de criar o chamado passaporte da vacina? Não

Impraticável no quadro do país, certificado ainda traria novo tipo de exclusão

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José David Urbaez Brito

Médico infectologista, é presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal

Países que alcançaram o controle da circulação viral, a partir da implementação de lockdowns (bem planejados e executados) e a realização de campanhas massivas de vacinação bem-sucedidas, estão implantando um certificado de vacinação.

Com o documento, pessoas teriam acesso livre a locais fechados, eventos, viagens, sem necessidade de testagem com RT-PCR, uso de máscara ou de manter distanciamento. Alcançaríamos, assim, “um novo normal”, uma suposta recuperação da tão sonhada livre circulação de pessoas.

Esse salvo-conduto, o passaporte da vacina, já está contemplado como ferramenta de controle da pandemia na Europa, continente formado maioritariamente por países de alta renda per capita, e seus setores do turismo pressionam fortemente pela sua vigência.

No entanto, seu uso impõe um novo tipo de discriminação, uma vez que, ao nominar dois grupos hierarquizados, vacinados e os não vacinados, exclui as pessoas que não foram imunizadas.

Na prática, isso cria barreiras para a livre circulação, possibilidade de viagens aéreas e até a empregabilidade daqueles que por alguma razão não tenham recebido o esquema vacinal.

Mesmo em países de alta renda, a desigualdade no acesso à vacina é um fato, com percentuais de imunização significativamente menores entre imigrantes, minorias religiosas e étnicas.

Repete-se em termos sociológicos o que observamos ao analisar a geoeconomia vacinal no planeta: países de alta renda (15% da população mundial) detêm 45% das vacinas produzidas, e somente 0,9% dos habitantes de países de baixa renda tinham recebido pelo menos uma dose de vacina até junho. O abismo entre vacinados e não vacinados escancara, mais uma vez, a escandalosa desigualdade da pandemia.

A implementação do passaporte da vacina que tramita no Legislativo brasileiro é impraticável no quadro do país: taxas elevadíssimas de transmissão (média de novos casos em 7 dias de 214,32 por 100 mil habitantes e percentuais de testes com resultados positivos para Covid acima de 15% em todas as regiões do país, nível máximo de transmissão na classificação do CDC de Atlanta), lenta campanha de vacinação (um pouco mais de 12% da população com esquema vacinal completo), desigualdades profundas e, mais recentemente, até suspeitas de escândalos de corrupção.

Um bom exemplo no quesito da desigualdade é mostrado em pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP no município de São Paulo, que constatou como a estratégia vacinal atualmente adotada não atinge populações de regiões com as maiores taxas de morte por Covid-19.

Nesse contexto, implementar o passaporte da vacina cria a ficção de uma falsa normalidade e fomenta privilégios de quem já os têm. O prioritário deve ser a luta por uma campanha de vacinação inclusiva, disponibilizando os imunógenos para todos e para países sem recursos.

Enquanto permaneçam suscetíveis essas populações excluídas, não haverá barreira capaz de eliminar a ameaça do SARS-CoV-2 para o coletivo mundial, pois a biologia do vírus é implacável. Geração de variantes com escape imune e dúvidas sobre o poder das vacinas em bloquear a transmissão, entre outros pontos, revelam nossas fragilidades.

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