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Filipe Campello

Como vender o invisível

Certificado NFT segue a lógica da criptomoeda e torna a arte autêntica de novo

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Filipe Campello

Doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt, é professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco e professor visitante na Università di Perugia

A última polêmica ligada ao mercado da arte foi a venda da escultura "Io Sono" ("Eu sou"), do escultor italiano Salvatore Garau. Certamente sua venda por 15 mil euros (cerca de R$ 93 mil) passaria despercebida, não fosse um detalhe: a obra não existe.

Boa parte dos comentários vistos a partir daí foram sobre o "non-sense" de se comprar uma obra que, na verdade, só existe enquanto ideia. Seu certificado de compra diz o seguinte: "Escultura imaterial, abril de 2020. Para se colocar em uma habitação privada, em um espaço livre de qualquer dimensão de aproximadamente 150 cm x 150 cm".

Contudo, diferente do que foi polemizado, não acho que a questão seja tanto a imaterialidade da obra. Há mais de cem anos já se atribuía valor ao conceito da obra independentemente de sua materialidade: o valor da"La Fontaine", de Marcel Duchamp, exposta em 1917, não está no urinol (que nem sequer foi feito por Duchamp), mas no sentido que lhe é atribuído. Em 1952, John Cage "toca" uma peça musical composta de 4 minutos e 33 segundos de silêncio. Em 1951, Rauschenberg expõe suas "white paintings" —pinturas que, na verdade, são telas em branco.

Filipe Campello -  Doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt, pós-doutorado pela New School for Social Research (Nova York) e professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco
O professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco Filipe Campello - Helder Tavares

O que surpreende, então, não é a imaterialidade ou invisibilidade de "Io Sono": pode-se dizer que, em vez de trabalhar com o silêncio como parte integrante da música, ou com o espaço em branco como propriedade da pintura, Garau representa o espaço vazio que também compõe obras de escultura ou arquitetura (o que ele já havia feito em "Buda em Contemplação", um quadrado demarcado com fitas no chão da Piazza della Scalla, em Milão). Para o mercado da arte, a questão é outra: como vendê-la?

Quando Walter Benjamin falava sobre a perda da autenticidade a partir do cinema e da fotografia, ele não imaginava que o capitalismo iria dar um jeito de resolver o problema. Com a crescente virtualização da arte, seria necessário encontrar uma certificação de autenticidade, sem a qual uma obra virtual não agregaria valor e não poderia se tornar uma mercadoria —um "produto cultural", como chamou Theodor Adorno.

Para Adorno, nesse processo que ele denomina indústria cultural, o âmbito da arte, que deveria ser uma espécie de último âmbito de resistência diante da lógica da mercadoria, acaba por sucumbir a ela, fazendo com que o valor estético da obra seja substituído pelo valor de troca.

Se a arte sucumbiu ao seu valor de troca, o mercado da arte, diante da crescente virtualização (ou seja, um sentido de imaterialidade), ainda tinha que resolver o problema de como agregar valor a ela através de sua exclusividade.

A questão passa a ser como tornar a arte novamente autêntica. E a solução não poderia ser mais engenhosa: comprando um certificado de autenticidade. Isso é o Non-fungible Token (NFT): um certificado que segue a lógica da criptomoeda, "criando" autenticidade. O problema da autenticidade, antes relacionada à arte, é transferido para a própria moeda.

Tudo isso tem escancarado o que já caracterizava o capitalismo em seu estágio de financeirização. Se antes ações ainda poderiam ter um correspondente material, as criptomoedas agregam valor de forma totalmente dissociada da materialidade. Nessa lógica financista, compra-se e vende-se o intangível.

E foi assim que uma obra virtual como a do artista Beeple foi leiloada por U$ 70 milhões, um meme foi vendido por US$ 473 mil e uma escultura que não existe, por 15 mil euros. No caso da escultura invisível de Garau, deu-se um passo adiante na intangibilidade, pois nem é necessária mais a obra para que seja comprada sua exclusividade: ela pode ser invisível, basta adquirir o seu certificado de autenticidade. Você não pode vê-la nem pode tocá-la, mas pode comprá-la.

O problema agora está resolvido, e a arte pode continuar assumindo seu valor de troca fictício, enquanto o capitalismo escancara seu estágio de financeirização: fetichizado como fim em si mesmo, imaterial e intangível. A única coisa que é real e autêntica é o capital —e o mercado da arte continua sendo uma ótima opção para lavagem de dinheiro.

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