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Octávio Luiz Motta Ferraz e Deisy Ventura

A máscara da PGR

Sinais cada vez mais fortes apontam para blindagem jurídica do presidente Bolsonaro

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Octávio Luiz Motta Ferraz

Professor de direito público e codiretor do Transnational Law Institute - King’s College London

Deisy Ventura

Professora titular e coordenadora do Doutorado em Saúde Global da Faculdade de Saúde Pública da USP

A atuação da Procuradoria-Geral da República (PGR), em especial a do procurador-geral, Augusto Aras, tem gerado enorme preocupação entre os defensores do Estado democrático de Direito no Brasil. A PGR, como se sabe, tem a competência exclusiva de fiscalizar o presidente da República, iniciando inquéritos e propondo ação penal junto ao Supremo Tribunal Federal quando entender que há indícios de cometimento de crime.

Apesar de o atual presidente ser, na visão de muitos especialistas, o que mais praticou atos enquadrados, em princípio, nos artigos do Código Penal, o atual procurador-geral e alguns de seus subprocuradores chegam enfaticamente à conclusão contrária. No caso mais recente, a subprocuradora Lindôra Araújo opinou pelo arquivamento de notícia-crime apresentada por partidos políticos denunciando a reiterada desobediência do presidente a normas que impõem o uso de máscaras em virtude da pandemia.

O artigo do Código Penal não poderia ser mais claro: comete crime quem “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” (art. 268). A obrigação do uso de máscara está em vigor no Brasil por meio de uma lei federal (lei 14.019/2020) e centenas de decretos estaduais e municipais.

Todo cidadão brasileiro está, portanto, obrigado a usar máscara nas condições previstas pela lei e, não o fazendo, comete o crime do artigo 268. O presidente não desfruta de imunidade à lei penal e, portanto, cometeu este crime todas as vezes em que deixou deliberadamente de usar a máscara. Nada mais simples.

Como pode a PGR discordar? Há duas explicações possíveis. A primeira é usada pela instituição ao sustentar seu pedido de arquivamento na notícia-crime, de que Bolsonaro, na verdade, não teria cometido o crime do artigo 268. Para chegar a essa conclusão, porém, a PGR se apoia em dois argumentos interconectados e extravagantes.

O primeiro, de natureza científica, é de que ainda não haveria comprovação suficiente de que o uso de máscaras diminui os riscos de transmissão do coronavírus. O segundo, de natureza jurídica, defende que o crime do artigo 268 só poderia ser cometido se a conduta do agente comprovadamente resultar em “introdução ou propagação da Covid-19”. Caso ambos estivessem corretos, a acusação por certo seria improcedente, não apenas quanto ao presidente, mas igualmente em relação a qualquer outro violador contumaz da obrigação de portar máscaras.

O problema é que tais premissas não são corretas. Em relação à primeira, há estudos que demonstram a relevância do uso de máscaras na diminuição de transmissão do coronavírus. Com base neles, a Organização Mundial da Saúde aconselhou e o mundo inteiro introduziu a obrigatoriedade do uso de máscaras, com reconhecido êxito.

Mas, mesmo que esses estudos não existissem, ou fossem inconclusivos, como diz a PGR, isto não afetaria a conclusão de que o presidente cometeu o crime do artigo 268. Isso porque o crime do artigo 268 é considerado formal e de perigo abstrato (ou presumido); ou seja, independe da efetiva existência de dano (resultado lesivo), pois a intenção do legislador é exatamente prevenir uma situação de potencial risco à saúde pública e não de punir quem comprovadamente causou dano.

Isso fica ainda mais claro pela existência de outro crime no Código Penal que, esse sim, pune a prática de ato lesivo: “art. 131 - Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”. No crime do artigo 268, portanto, o que se pune é o chamado “dolo genérico” —nas palavras do respeitado criminalista Nelson Hungria, “a vontade livre e consciente de transgredir a determinação oficial”, ou seja, exatamente o que faz, de maneira contumaz, o presidente da República. O que teria, então, levado a PGR a ignorar distinção tão elementar do direito penal?

A segunda explicação, que responde a esta pergunta e ganha terreno na comunidade jurídica, é a de que a PGR abandonou seu papel constitucional de fiscal da lei e funciona, hoje, como uma espécie de advocacia da Presidência.

Essa leitura nos parece plausível não apenas diante da conduta da PGR, incapaz enxergar crime onde tantos outros o veem, como das circunstâncias em que o atual PGR foi nomeado. Como se sabe, desde o primeiro mandato de Lula nenhum presidente havia nomeado um procurador-geral fora da lista tríplice votada pela ANPR (Associação Nacional de Procuradores da República).

Embora não consagrada formalmente, a lista integra as regras não escritas que buscam garantir a imparcialidade da Procuradoria-Geral, os chamados “guardrails” da democracia, para utilizar a expressão de Levitsky and Ziblatt no celebrado livro "Como as democracias morrem" (ed. Zahar, 2018).

Assim, ao preconizar a impunidade de gestos do chefe de Estado como o de arrancar a máscara de uma criança durante uma aglomeração, em pleno surto de doença infectocontagiosa e "contra legem", talvez a PGR tenha optado por aderir literalmente à propaganda presidencial e retirar a própria máscara.

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