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Paulo Lotufo

A banalização da morte (e da causa)

Além do aspecto ético-profissional, motivação do óbito é parâmetro científico

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Paulo Lotufo

Epidemiologista e professor titular de clínica médica da Faculdade de Medicina da USP

Causou espanto, na última quarta-feira (22), na CPI da Covid no Senado, a declaração de dirigente de operadora de saúde de que a empresa adotou procedimento para alterar o código de diagnóstico dos pacientes com o novo coronavírus. A doença deixou de ser mencionada, inserindo outra no lugar, após determinados dias de internação.

A justificativa foi que “após 14 dias do início, pacientes de enfermaria, ou 21 dias, pacientes em UTI, o CID [Classificação Internacional de Doenças] deveria ser modificado para qualquer outro, exceto B34.2 [infecção por coronavírus], para que possamos identificar pacientes sem necessidade de isolamento”.

O diretor-executivo da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Júnior, depõe à CPI da Covid - Edilson Rodrigues/Agência Senado

O procedimento justificado por necessidade em gerenciar leitos de isolamento acabou comprovando, nos exemplos de reportagens, que interferiu no preenchimento da declaração de óbito nos hospitais dessa operadora, reduzindo o número de mortes pela Covid-19.

Se caberá ao Conselho Regional de Medicina investigar o aspecto ético-profissional da operadora, torna-se necessário esclarecer que o significado de causa básica de morte não é definição banal.

Ao contrário: desde o final do século 19, a necessidade de se padronizar a causa básica de morte levou à criação da CID, que foi se aprimorando de tempos em tempos até ser assumida, em 1948, como uma das primeiras atividades da recém-fundada Organização Mundial da Saúde (OMS). A cada ano há reuniões periódicas de ajuste para codificar novas situações.

Independentemente da ordenação de causas preenchidas pelo médico na declaração de óbito, as regras da CID permitem definir aquela que foi a causa básica, um conceito distinto da causa final da morte. O determinante é como se desenvolveu a história natural de um agravo ou de um acidente e, para isso, há sempre um raciocínio clínico subjacente —e não o tempo entre infecção ou acidente e a data da morte.

Fora do “contexto Covid”, há situações na prática médica que mostram que a temporalidade tem importância menor na causa de óbito.

Um exemplo é uma pessoa que sofreu politraumatismo por atropelamento. Atendida em um hospital, submeteu-se à cirurgia, permaneceu internada e recebeu alta hospitalar sem maiores sintomas. No entanto, se essa mesma pessoa apresentou —semanas ou meses depois do acidente e da alta— sintomas sugestivos de doença cardiovascular (a mais frequente é tromboembolismo pulmonar), foi internada e morreu com o diagnóstico de embolia pulmonar, o médico assistente não emitirá a declaração de óbito e encaminhará o corpo ao Instituto Médico Legal. A razão é que o tromboembolismo pulmonar ocorreu em razão do atropelamento, fato fundamental que aumentou o risco de embolia pela cirurgia e a internação prolongada. Mesmo com identificação nesse paciente de mutação genética, que aumenta a possibilidade de trombose, a autopsia médico-legal continuou obrigatória, e a causa básica será atropelamento.

Retornando às doenças infecciosas. O tempo de contaminação e a data de óbito têm pouca importância. Tuberculose, hanseníase, hepatite B e C, Aids cursam por décadas. Exemplo: um paciente com hepatite C que foi submetido a transplante de fígado e permaneceu bem por um longo tempo, mas adquiriu uma infecção por agente oportunista (vírus, bactéria, fungo) pelo uso de imunessupressores.

A causa básica da morte será hepatite C, não o agente biológico que levou ao óbito.
Após o depoimento do dirigente da operadora, “especialistas” defendiam nas mídias sociais o critério de causa básica considerando o tempo de contágio, talvez apelando ao fato de que doenças e agravos fossem condições como infrações civis ou penais onde houvesse prescrição de pena.

Lamentável assistir a fato bizarro como esse. Afinal, Geraldo de Paula Souza, primeiro diretor da Faculdade de Saúde Pública da USP e um dos representantes do Brasil na reunião de fundação da ONU, em 1945, lançou a proposta de uma agência mundial para a saúde. Em 1948, ele chefiou a delegação brasileira na fundação da Organização Mundial da Saúde. No retorno, implantou a classificação de doenças em língua portuguesa, atividade na qual o Brasil ainda tem proeminência mundial.

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