Descrição de chapéu
Patricia Porto da Silva

À espera do amante

Logo cedinho, a expectativa pelo encontro com a Folha

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Patricia Porto da Silva

Mestra em educação, é professora aposentada e leitora da Folha “há décadas”

Como falar de uma relação antiga e duradoura sem incorrer em certo grau de sentimentalismo? Quando nasci, a Folha já estava presente. Na juventude, foi referência. Nos anos de chumbo, voz contraposta à opressão. Porta-voz de nosso anseio por direitos inerentes à democracia. Participou, através do trabalho de seus articulistas, dos debates precedentes à edição da Constituição Cidadã. Esteve presente, enfim, nos piores e melhores momentos do país.

Entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, nosso vínculo se estreitou. O jornal passou a fazer parte do meu universo particular, chegando cedinho ao nosso encontro diário para uma conversa que integra mais participantes a cada virar de página.

Diálogo seria, a meu ver, a expressão para descrever o convívio com a Folha —que assino desde idos de 1990 e reconheço como contribuição significativa na minha formação enquanto cidadã do mundo. A par das novas formas de comunicação dos dias de hoje, existe algo de solidez, responsabilidade e compromisso histórico inerentes à composição de um jornal como a Folha.

Destaco que tal vínculo me traz, adicionalmente, uma sensação de pertencimento. Tenho a impressão de que faço parte do jornal; nos limites de minha individualidade, guardadas as devidas proporções, colaboro, contribuo, incluo-me.

Dialogar com as notícias diárias, conhecer diferentes pontos de vista, são práticas que podem atuar como antídoto contra a alienação; por mais restritos que nos pareçam, nossos atos podem influenciar terceiros. Como aquele canto de galo a que se refere João Cabral de Melo Neto, que “sozinho não tece uma manhã”, pois é preciso que um outro galo o lance a outro e esse a outro... Não somos ilhas, enfim; não estamos sós.

Foi assim que adquiri o hábito de escrever minhas opiniões e enviar ao Painel do Leitor, seção que viabiliza acesso a opiniões de outras pessoas comuns. Para mim, leitura obrigatória, pois as opiniões de leitores compõem uma amostra do debate em curso na sociedade. Já houve ocasiões de reavaliar minha visão de um determinado tema a partir da leitura da carta de outro leitor. A seção funciona ainda como guia, chamando atenção para algum artigo que escapou em dias anteriores, o que me faz buscar edições precedentes até encontrar e ler o tal texto citado.

Com isso, certas vezes me pego dizendo: “Como eu poderia perder esse artigo?!”. Sim, pois se trata de uma equipe de articulistas de mão cheia, que se alternam em análises de maior profundidade, cada um na sua especialidade, predominantemente.

Assim, Ruy Castro, biógrafo de ícones brasileiros, tem sempre um caso interessante para brindar o leitor em crônicas memoráveis, como a que resgata a memória de Luiz Antonio, autor de nada menos que “Barracão de Zinco” e “Lata D’água”.

Equipe luxuosa, reunida na mesma página: Álvaro Costa e Silva, Bruno Boghossian, Delfim Netto, Claudia Costin —só para citar alguns de cabeça. Pois ainda temos Elio Gaspari, com suas informações “quentíssimas” e estilo regado de ironia. Temos Janio de Freitas, Demétrio Magnoli e tantos outros.

“Temos” porque, com o hábito, vamos assumindo certa intimidade em relação ao jornal. Quanto aos articulistas, seus nomes soam familiares, como se fossem nossa roda de amigos. O que, por sua vez, faz lembrar a expressão da filósofa Julia Kristeva ao se referir ao New York Times, que ela esperava em sua casa, cedinho —segundo ela, com a expectativa de uma mulher “à espera de seu amante”.​

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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