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Guilherme France

A quem interessa uma nova lei antiterrorismo?

Projetos podem servir para reprimir movimentos reivindicatórios legítimos

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Guilherme France

Mestre em história, política e bens culturais pela Fundação Getulio Vargas e autor do livro ‘As Origens da Lei Antiterrorismo’ (ed. Letramento)

Na contramão global de reconhecimento das graves consequências negativas da “guerra ao terror” desencadeada a partir dos atentados de 11 de Setembro, a Câmara dos Deputados tem avançado propostas sobre terrorismo que apresentam graves riscos para o já combalido espaço cívico brasileiro. Por isso, é importante entender a origem desses riscos e a quem interessa, neste momento, uma nova lei antiterrorismo.

De um lado, a falta de uma definição universal permite que o rótulo “terrorista” seja utilizado para silenciar, perseguir e criminalizar opositores, separatistas e movimentos sociais por todo o mundo. Não é diferente no Brasil, onde é grande o temor de que uma legislação antiterrorista, à semelhança do que ocorria com a Lei de Segurança Nacional, seja utilizada para reprimir movimentos reivindicatórios legítimos. Agrava esses riscos, por outro lado, a autorização para que sejam adotadas medidas excepcionais em nome do “combate ao terrorismo”.


No Brasil, a Lei Antiterrorismo, de 2016, foi construída de forma a limitar abusos em ambas as frentes. A consequência mais óbvia foi a sua rara aplicação nos últimos cinco anos, absolutamente compatível com a baixíssima incidência de atividades terroristas no país. Esse cenário, todavia, mostrou-se insatisfatório para quem desejava abusar da justificativa de combater o terrorismo para concretizar interesses diversos.

Assim, ganharam força discussões para reformar a legislação. Uma comissão especial foi formada na Câmara para discutir o projeto de lei 1.595/2019, originalmente apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro enquanto deputado. A proposta dispensa a autorização judicial para a adoção de medidas excepcionais e atribui o comando das forças contraterroristas diretamente ao presidente da República, criando um sistema particular, mas oficial, de vigilância e segurança.

Em paralelo, a Comissão de Segurança Pública aprovou projeto que amplia radicalmente a definição de terrorismo, além de esvaziar a excludente de ilicitude que impedia a aplicação desta lei contra movimentos sociais. Juntas, as propostas representam (mais) um arroubo contra o espaço cívico brasileiro.

Do ponto de vista internacional, as propostas não interessam aos Estados Unidos ou às organizações, como o Grupo de Ação Financeira (Gafi), que empreenderam verdadeira cruzada normativa para disseminar leis antiterrorismo pelo mundo nos últimos 20 anos. A Lei Antiterrorismo, de 2016, satisfaz as suas demandas. Na verdade, o Gafi tem demonstrado preocupação crescente com o abuso dessas legislações por lideranças autoritárias que restringem o espaço cívico sob falsas justificativas em países como Uganda, Sérvia e Turquia. ​

Nem sequer interessam às Forças Armadas ou às forças policiais, responsáveis pela implementação da política de prevenção e combate ao terrorismo. Dez organizações representando polícias de todo o país se manifestaram contra o projeto, afirmando que ele invade as suas atribuições constitucionais, com previsões legais elásticas que podem ser invocadas com discricionariedade ampla. Sinalizaram, ainda, que o projeto conferia prerrogativas próprias de um estado de legalidade extraordinária, como o estado de sítio, com uma centralização excessiva de competências na Presidência da República. Juízes e procuradores também já se manifestaram contra a proposta.

Não interessam, ainda, àqueles preocupados em atualizar a política antiterrorista brasileira. Afinal, não endereçam a principal tendência do terrorismo global nos últimos anos: a multiplicação de atentados motivados pelo racismo, pela xenofobia e pelo neonazismo.

Os projetos parecem interessar justamente à extrema direita, que tem promovido uma lenta, mas contínua e incessante, degradação do Estado democrático de Direito brasileiro. Restringem a atuação de ONGs e movimentos sociais. Centralizam e conferem poderes excepcionais —de tempos de guerra ou estado de sítio— ao presidente da República. Criam novas instituições, fugindo aos mecanismos de controle constitucionais.

Nos últimos anos, na ausência de ataques terroristas, se multiplicaram iniciativas, como essas propostas, que atentam contra a democracia e contra os Direitos Humanos. São essas as principais ameaças que o Brasil de 2021 enfrenta.

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