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Michel Gherman

O circo da idolatria

Jair Bolsonaro pensa estar exultando os judeus, quando de fato os desmoraliza

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Michel Gherman

Assessor acadêmico do Instituto Brasil-Israel, professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos, e pesquisador da Ben Gurion University

Este último 7 de Setembro deveria servir de início para as comemorações do bicentenário da Independência do Brasil. Por coincidência, nesta data, os judeus no país também comemoravam a chegada do novo ano.

Era para ser um momento de júbilo e reflexão. No entanto, para uma boa parte dos judeus brasileiros, a data foi vivida com um travo amargo.

No dia em que se comemorava 199 anos da Independência do Brasil e, ao mesmo tempo, o Ano-Novo judaico de 5782, o presidente Jair Messias Bolsonaro decidiu começar o seu pronunciamento, no ato antidemocrático que promoveu na avenida Paulista, com uma citação bíblica sobre a relação entre o povo de Israel e seu Deus. Assim disse Jair: “Deus nunca disse para Israel ‘fique em casa que eu luto por você’. Ele sempre disse ‘vá à luta que estou com você’”.

O significado da citação é claro. Se faz sentido enunciá-la a essa altura dos acontecimentos, é uma escolha de cada um.

O problema aqui é outro —o da idolatria, com Bolsonaro, que leva Messias no nome, se colocando como Deus. E transformando os judeus em seguidores dele.

Para piorar, a apropriação indevida de símbolos da cultura judaica ou da própria bandeira de Israel nas manifestações a seu favor acabam corroborando uma imagem que vem sendo falsificada desde que sua candidatura foi urdida.

Nada mais sintomático em um governo onde a Israel Imaginária (bíblica, armada, branca e ultracapitalista) sempre esteve muito presente. Dentre as referências fundamentais para a formação desta “nova” comunidade judaica, ou judaico-cristã, estão três eixos formadores principais: a Bíblia (em uma leitura fundamentalista cristã), as armas (o valor da defesa como superior ao valor da vida) e o capitalismo (judeus tidos como representantes de uma perspectiva ultraliberal e antiestado). São esses pontos que acabam por pavimentar o caminho da ideia de “judeu imaginário”, que tem se tornado gradativamente importante para os grupos ultraconservadores brasileiros nos últimos anos.

Parece não haver uma continuidade constitutiva entre o judeu imaginário e a identidade judaica anteriormente estabelecida no país. Comunidades judaicas formadas a partir de laços migratórios e construídas por uma unidade institucional no país de destino parecem pouco importantes nessa nova gramática identitária.

A comunidade judaica e o próprio Estado de Israel são bem mais heterogêneos e diversos do que supõem ou gostariam os bolsonaristas. Só não vê quem não quer.

Tal narrativa não deveria ser encarada isoladamente. Paralelamente, e nada é por acaso, despontou nestes últimos anos o antissemitismo de extrema-direita no Brasil, sintoma de uma cultura do ódio que sempre serviu como caldo para os regimes autoritários.

Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos mostraram que ataques antissemitas quadruplicaram do primeiro semestre de 2021 em relação ao mesmo período de 2020. Não bastasse, de 2015 a 2021, o número de células neonazistas saltou de 75 para 530. Um estudo da "Anti-Defamation League" mostrou que o sentimento antijudaico entre a população brasileira cresceu de 19% para 26%, de 2019 para 2020.

Montagem Goebbels e Roberto Alvim
Montagem coloca lado a lado cena de vídeo do ex-secretário da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, e do ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels - Montagem

O travo amargo poderia parar por aí, mas muitos judeus foram surpreendidos no dia 7 também com um artigo de opinião publicado neste espaço ("O Brasil, o presidente e o 7 de Setembro"), francamente político e opinativo, e que encerrava com a tradicional saudação judaica, sem nenhum nexo com o debate proposto: "shaná tová umetuká" —que seja um ano bom e doce.

Na tradição judaica, o Ano-Novo representa efetivamente a criação do mundo como o conhecemos hoje. A data tem caráter universal. Mas, como tudo na tradição judaica, as referências simbólicas têm relação com o mundo prático. Acredita-se também que, na passagem de ano, acontece o julgamento de todos e todas. Julgamento que se dá não pelas crenças, mas pelas ações praticadas no mundo. No aqui e agora.

O circo da idolatria, foi armado justamente quando judeus reais comemoravam, nas casas e nas sinagogas, o Ano-Novo. Nada mais simbólico —no Ano-Novo judaico, é quando pedimos um tempo mais justo e mais igual. Um ano de saúde e de fartura. Um ano de paz e de entendimentos. O Ano-Novo bolsonarista é o inverso disso tudo. Ao contrário do profeta Balaão na Bíblia, o presidente pensa estar exultando os judeus, quando de fato os desmoraliza.

Um "shaná tová umetuká" de verdade para todas e todos.

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