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Claudio Lottenberg

'Quando não se precisa prestar atenção em nada, então não há vida nenhuma'

Rosh Hashaná é convite para olharmos ao redor e avaliarmos o que fizemos

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Claudio Lottenberg

Oftalmologista, é presidente da Conib (Confederação Israelita do Brasil) e do Conselho Deliberativo da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein

O escritor suíço Robert Walser afirmou certa vez que prestar atenção embeleza a vida, porque “quando não se precisa prestar atenção em nada, então não há vida nenhuma”. O Rosh Hashaná, o Ano-Novo judaico, é um convite anual para olharmos ao nosso redor e prestarmos atenção ao que fizemos, tanto como indivíduos quanto como membros da sociedade.

Nas nossas vidas pessoais, fomos gentis? Fomos suficientemente generosos? Agimos mais por medo ou por amor? Tratamos as pessoas que nos cercam com mais compaixão ou indiferença? Vivemos de acordo com os nossos princípios éticos ou optamos por seguir um caminho menos trabalhoso? Cabe a cada um refletir sobre o que fez no ano judaico de 5781 e reagir da forma que julgar mais adequada. No entanto, se olharmos para o nosso funcionamento enquanto sociedade, é possível tirar algumas conclusões.

O médico Claudio Lottenberg, presidente da Conib (Confederação Israelita do Brasil) - Greg Salibian - 2.out.19/Folhapress

O mundo vem atravessando um retrocesso em frentes diversas —que não é novo, mas que tampouco dá sinais de enfraquecer. No Brasil e no exterior, manifestações racistas e antissemitas continuam a se multiplicar, endossadas implícita ou explicitamente por lideranças que se julgam na posição de reescrever a história de acordo com suas próprias convicções políticas; que se esforçam, em outras palavras, para transformar fatos comprovados em questão de interpretação e tornar essa prática aceitável.

Segundo um levantamento da antropóloga Adriana Dias, as células neonazistas no Brasil saltaram de 75, em 2015, para 530, em maio de 2021. Outro monitoramento, elaborado pela ONG Safernet, mostrou uma explosão de denúncias sobre conteúdos de apologia ao nazismo nas redes: casos desse tipo foram de 1.282 (em 2015) a 9.004 (em 2020).

São ocorrências que nos forçam a nivelar por baixo, reafirmando valores básicos —como a tolerância, o pluralismo, o respeito à democracia, ao diálogo e à diversidade— de uma maneira que soaria absurda dez anos atrás. A estratégia dos odiosos parece ser a insistência, e ela é bastante eficaz: passados 76 anos desde a libertação de Auschwitz, é exaustivo repetir ideias que deveriam ser consensuais; diante disso, o cinismo e a apatia podem parecer atalhos tentadores.

Gerson Gildin, 54, Renata Gildin, 43, e os filhos celebram o Ano-Novo judaico em casa, reunindo familiares e amigos em videoconferência - Adriano Vizoni - 18.set.2020/Folhapress

E, no entanto, o Rosh Hashaná nos lembra que tudo o que construímos, para o bem ou para o mal, é fruto de escolhas. Nossas vidas, as comunidades de que fazemos parte, a sociedade brasileira, o mundo em que vivemos: não se trata de natureza, mas de artifício. Cada pedaço da realidade existe porque foi criado pela ação ou inação de alguém, e poderia, portanto, ter sido criado de um modo diferente. Nada é permanente ou imutável.

Quando formos confrontados com uma sensação de impotência ou cansaço, é importante constatar que, enquanto estivermos vivos, seremos agentes de mudança, e que não existe futuro para quem não acredita no futuro. Na perspectiva judaica, o mundo não foi criado apenas uma vez, mas é recriado a cada ano —e, com isso, ganhamos uma nova chance. O Rosh Hashaná é a celebração dessa possibilidade.

Diante da conjuntura atual, a tristeza é inevitável, mas não muda nada: quando ninguém acredita que uma solução melhor é possível, aqueles que se beneficiam da manutenção do status quo permanecem protegidos. Ser otimista não significa ignorar os problemas que se acumulam à nossa volta de forma cada vez mais inquietante, mas seguir agindo apesar deles e aperfeiçoar a nossa capacidade de pensar saídas. A história da nossa comunidade mostra que a perseverança é mais produtiva do que qualquer noção estagnada de vitória ou derrota.

Nesta segunda e terça-feira (6 e 7 de setembro), quando entrarmos no ano de 5782 —data que coincide com a Independência do Brasil, o que tem uma carga simbólica evidente—, é fundamental lembrar que o futuro é uma construção coletiva, e que cada um de nós, certamente, pode contribuir para a criação de um mundo mais justo e respeitoso. Basta prestar atenção.

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