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Dagmar Zibas

Quem tem medo de Paulo Freire?

Força de uma educação humanista, inclusiva e emancipadora sempre prevalecerá

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Dagmar Zibas

Doutora em educação pela USP e pesquisadora aposentada da Fundação Carlos Chagas

Foi um privilégio frequentar, em 1982, o curso que Paulo Freire, recém-chegado do exílio, ministrava na pós-graduação da PUC-SP; e ousado foi me candidatar à função de secretária quando o mestre comentou, em sala de aula, que procurava pessoa que o ajudasse a administrar sua correspondência.

Como aluna, compreendi o valor de uma abordagem que foca o educando em sua relação dialógica com o educador e como sujeito de sua aprendizagem, aprendizagem das letras e da ciência, mas também do ser no mundo e na história.

Adicionalmente, como secretária de Paulo Freire por cinco anos, experimentei um sentimento de perplexidade por lidar mensalmente com centenas de cartas (provenientes de países tão distintos como EUA, Inglaterra, Angola, Suécia, Índia, França, Austrália, Palestina ou Uruguai), que traziam as mais variadas solicitações, consultas e convites, cartas assinadas por renomados intelectuais, reitores de prestigiadas universidades, professores universitários e de todos os outros níveis, estudantes, líderes comunitários etc. Esse assombro se estendia a outros aspectos. Por exemplo, me surpreendia como uma figura de tal status podia se relacionar com tanta simplicidade e empatia com qualquer pessoa que dela se acercasse.

Outras questões se colocavam: por que um professor, armado apenas de giz e de palavras que expressavam um pensamento profundamente humanista e com evidente influência cristã, incomodava tanto o governo militar? Qual a razão das ameaças que obrigaram o mestre a se exilar para proteger a si e a família? A resposta estava dada e, infelizmente, ainda é válida: um educador, que ajude o aluno a compreender-se como protagonista de sua própria história, da história de sua comunidade e de seu país, será sempre considerado um perigo por quem pretende calar a voz daqueles que nunca tiveram vez nas dinâmicas de poder do Estado e da sociedade.

Com a debacle da ditadura, pensou-se que as tentativas de suprimir a concepção freiriana da educação estariam definitivamente enterradas. Mas nova perplexidade nos aguardava.

No final dos anos 1980 e na década seguinte, a abordagem educacional de Freire, extremamente valorizada no exterior, sofria aqui críticas de intelectuais que abraçaram uma concepção utilitarista da educação, concepção divulgada em documentos do Banco Mundial. Como aquela instituição financiava reformas educacionais aqui e em diversos países, ficou clara a vinculação entre os projetos governamentais daquele período e o poder econômico da instituição financeira. O aspecto farsesco do processo foi a tentativa de atribuir os baixos índices de aprendizagem de todo o sistema de ensino a uma suposta predominância de método freiriano nas escolas públicas.

Pesquisadores rigorosos rebateram essa falsa associação, divulgando dados e desenvolvendo sólidos argumentos para demonstrar que a adesão a Freire era (e é) absolutamente minoritária no conjunto das escolas públicas, uma vez que a metodologia exige formação sólida e tempo para um trabalho docente centrado em profundo conhecimento das condições de vida do educando.

Como pôr em prática tal metodologia em um sistema em que professores, exercendo profissão de baixo status social porque mal paga, circulam por duas ou mais escolas, enfrentando salas superlotadas, sem tempo até para aprender o nome de todos os alunos? Pesquisas sempre demonstraram que, na maioria absoluta das escolas públicas, vigora o ensino tradicional, em que o estudante, na melhor das hipóteses, apenas reproduz mecanicamente o conhecimento veiculado, sem conseguir compreender o significado ou a importância dos conteúdos escolares para sua vida cotidiana ou para seu futuro.

Neste domingo (19), dia de comemoração do centenário do patrono da educação brasileira, é desalentador registrar que, novamente, esferas oficiais estão tentando apagar a extraordinária contribuição de Paulo Freire para projetos de desenvolvimento integral dos educandos. Entretanto, como nas tentativas anteriores, o vigor das ideias freirianas prevalecerá, inspirando, aqui e em todo mundo, educadores que acreditam na força de uma educação humanista, inclusiva, e, portanto, emancipadora.

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