Certas notícias soam inacreditáveis pelo mero fato de surgirem no século 21. Como esta: postos de saúde de São Paulo pedem autorização do marido para inserção de dispositivo intrauterino (DIU), como revelou a Folha. E não só porque a prática é ilegal.
Tudo se passa como se profissionais de saúde e suas pacientes vivessem em 1821, e não em 2021. Por incrível que pareça, houve um tempo em que mulheres não podiam nem votar, menos ainda decidir o que é melhor para elas e seu próprio corpo, hoje uma obviedade na maior parte das nações.
Não em certas partes do Brasil. Pelo menos sete unidades básicas de saúde paulistanas pedem a assinatura do parceiro nos formulários de consentimento; em agosto, outra reportagem revelara que se exige o mesmo de clientes de alguns seguros de saúde.
O DIU, dispositivo em formato de T posicionado no útero, impede a fecundação ou a fixação de um óvulo fecundado, de maneira a impedir a gestação. Tem perto de 99% de eficiência e pode ser removido a qualquer tempo, se a mulher decidir engravidar.
Por ser reversível, o método não se enquadra na categoria dos contraceptivos com efeitos permanentes, como vasectomia ou ligadura tubária. Nesses dois casos, a lei 9.263/96, sobre planejamento familiar, prevê a exigência de consentimento do cônjuge para a realização da intervenção cirúrgica.
A provisão legal poderá funcionar como incentivo para que casais cheguem a desejável consenso. Em havendo algum desacordo entre mulher e marido, contudo, pode-se argumentar que a exigência, apesar de legal, exorbita na limitação da autonomia do indivíduo sobre o próprio corpo.
Parece provável que muito dessa inclinação autoritária mostrada por certos provedores de serviços de saúde deriva de concepções morais particulares, se não de fundo religioso, que funcionários e instituições se julgam no dever de impor a usuários.
Trata-se, em verdade, de um abuso. O acesso a contraceptivos constitui um direito que não pode e não deve ser dificultado, seja pela exigência de consentimento de outrem, seja pela interposição burocrática de outras barreiras, como consultas de aconselhamento psicológico ou familiar.
Não basta o poder público reconhecer falhas e prometer suspensão da prática no caso do DIU, como fez a Prefeitura de São Paulo; é mandatório que se inicie uma campanha para esclarecer servidores e outros profissionais de saúde sobre a ilegalidade da exigência.
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