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Túlio Vianna

Revogação integral da Lei de Segurança Nacional é tiro no pé da democracia

Causa é nobre e bem-intencionada, mas pode abrir espaço para pregações de ruptura

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Túlio Vianna

Advogado criminalista e professor de direito penal da Faculdade de Direito da UFMG

A publicação da lei nº 14.197/2021, que, quando entrar em vigor, revogará a Lei de Segurança Nacional (LSN), foi saudada por muitos como um avanço da democracia brasileira, mas traz consigo algumas lacunas preocupantes.

A primeira delas é a completa ausência de previsão legal de tentativas de “golpes brancos”. Para que se caracterize o crime de golpe de Estado, pela nova lei, será indispensável que os agentes se utilizem de violência ou grave ameaça. Quaisquer tentativas de depor o governo legitimamente constituído por conspirações, acordos escusos ou outra trama frontalmente contrária às leis e à Constituição da República permanecerão criminalmente impunes.

Túlio Vianna - Advogado criminalista e professor de direito penal da Faculdade de Direito da UFMG
O advogado criminalista e professor de direito Túlio Vianna - Divulgação

A moribunda LSN muito prudentemente prevê como crime “incitar a animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis” (art.23, II). Com a revogação da LSN, esta conduta deixará de ser crime, e os aventureiros de todo o gênero ficarão ainda mais à vontade para pedir em público que as Forças Armadas traiam seu compromisso constitucional e usurpem a soberania política do povo brasileiro.

Não bastasse, haverá a descriminalização de associações antidemocráticas. A LSN prevê pena de 1 a 5 anos para quem “integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça” (art.16). Com a revogação da LSN, porém, essas associações deixarão de ser criminosas.

Finalmente, a revogação da LSN tornará lícita a propaganda de golpes de Estado. A LSN prevê pena de 1 a 4 anos para o crime de “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social” (art. 22). Quando revogada, porém, este tipo de propaganda deixará de ser crime. As manifestações pedindo golpes de Estado, intervenção militar e outras sandices totalitárias estarão liberadas tanto nas ruas quanto nas redes sociais.

Muitos dirão que o art. 286 do Código Penal, que pune a incitação ao crime, ainda poderá ser aplicado para enquadrar tais condutas. Mas é preciso lembrar que as penas previstas para este crime são bem inferiores (1 a 3 meses) e sua aplicabilidade à hipótese estará sujeita a muitas controvérsias nos tribunais.

Outros dirão que é próprio dos regimes democráticos manifestações contrárias ao próprio Estado democrático de Direito e que a liberdade de expressão deve prevalecer mesmo para aqueles que lutam para estabelecer tiranias. Uma aposta perigosa.

É famoso entre os estudiosos da liberdade de expressão o paradoxo da tolerância enunciado pelo filósofo Karl Popper em 1945: “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”. Se Estados democráticos permitirem a propaganda de golpes de Estado, inclusive por meios violentos, estarão na prática assistindo inertes a seus algozes cavarem a cova onde a democracia será enterrada.

A Constituição da República prevê, em seu próprio texto, os mecanismos que possibilitam a revisão democrática de seus próprios dispositivos. Qual o ganho para a democracia, então, em se tolerar que as pessoas façam abertamente apologia do uso da violência e da força para imporem seu sistema de governo?

A revogação da LSN é mais uma daquelas causas nobres e bem-intencionadas que pode produzir resultados desastrosos. No intuito de sepultar de vez o fantasma da ditadura militar, pode acabar abrindo espaço para que grupos autoritários já existentes em nosso país sintam-se ainda mais à vontade para pregar abertamente a ruptura da ordem democrática.

Tiro no pé da democracia brasileira, que já andava meio manca.

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