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Mauricio de Miranda Ventura

Velhice não é doença, é parte da vida

Saúde não é medida pela presença de enfermidades, mas pela preservação da capacidade funcional

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Mauricio de Miranda Ventura

Diretor técnico do Serviço de Geriatria do Hospital do Servidor Público Estadual e presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (Secção São Paulo)

A iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) de substituir o termo “senilidade” por “velhice” será um equívoco ao atualizar sua Classificação Internacional de Doenças (CID). O conjunto de 55 mil códigos exclusivos para lesões, doenças e causas de morte fornece uma linguagem comum que permite compartilhar informações sobre saúde em todo o mundo.

A primeira edição foi publicada em 1893 e, desde então, é utilizada por profissionais de saúde e pesquisadores. A CID é essencial para definir políticas públicas. Sua 11ª versão deve entrar em vigor em janeiro de 2022. A OMS alega que a medida resultou de discussões que apontavam para a conotação cada vez mais negativa de “senilidade”. O desacerto ao classificar “velhice” como doença, no entanto, poderá mascarar diagnósticos, pesquisas e coletas de dados. Ou seja, prejudicará a elaboração de ações de saúde para os idosos, além de potencializar a discriminação dessa faixa etária.

Para a geriatria, a “senilidade” é observada quando o envelhecimento ocorre associado às doenças crônico-degenerativas e suas complicações. Em contraponto, temos o termo “senescência”. Seu significado é sobre o que está envelhecendo. Do ponto de vista clínico, aponta para o envelhecimento não associado às complicações de doenças de caráter multifatorial. Dessa forma, é incorreto incluir “velhice” na CID-11. Há um risco potencial dessa codificação acentuar o preconceito contra idosos por entendê-los como doentes somente porque ultrapassaram os 60 anos. A medida da OMS é ainda uma contradição após alcançar avanços em políticas de envelhecimento ativo e à Década do Envelhecimento Saudável estabelecida pela própria entidade.

Desconhece ainda que é possível usufruir toda potencialidade de uma vida longeva. O diagnóstico de uma doença crônico-degenerativa como a hipertensão arterial, por exemplo, que, em si, é assintomática e traz pouca ou nenhuma limitação. O surgimento dessas complicações está relacionado a um mal controle, ou seja, o paciente hipertenso que não corrigir hábitos de vida e uso de medicamentos fatalmente estará sujeito a complicações no coração, rins e cérebro.

É possível separar as alterações do envelhecimento normal daquelas associadas às doenças crônico-degenerativas, embora muitas vezes não seja uma tarefa fácil. O envelhecimento tem suas consequências. O auge da nossa capacidade física ocorre por volta dos 27 anos. A partir daí há um declínio resultante da perda de massa e força muscular. É um processo irreversível. Mesmo quando não está associado às enfermidades multifatoriais, o envelhecimento tem como outra de suas características a diminuição da reserva funcional.

Dessa forma, caracterizar o envelhecimento saudável não está relacionado a ausência ou presença de doenças. Um conceito extremamente caro à geriatria é a capacidade de o idoso manter sua autonomia, mesmo sendo portador de alguma afecção. Assim, a saúde não é mais medida pela presença ou não de enfermidades, mas pela preservação da capacidade funcional. Não há qualquer motivo para o idoso perder sua independência. Se durante esse processo iniciar algum tipo de impedimento em relação a alguma atividade previamente adquirida, é por motivo de alguma enfermidade.

Teremos diversas implicações se de fato considerarmos a velhice como doença. Os planos de saúde poderão cobrar sobretaxas. Já os pesquisadores encontrarão adversidades na avaliação das causas de morte. Isso resultará em prejuízos nos estudos para prevenção e tratamento de certas doenças. Foi dessa forma que identificamos, em meados do século passado, as doenças cardiovasculares como importante causa de morte. Assim foi possível identificar os fatores de risco, preveni-los e criar terapias.

A morte do príncipe Philip, aos 99 anos, em Londres, em abril deste ano, é um exemplo. Ele ficou internado para tratamento de problemas cardíacos por cerca de um mês. Entretanto, de acordo com a imprensa, a causa da morte do marido da rainha Elizabeth 2ª foi de “idade avançada”. O documento ignora as insuficiências cardíacas como preponderantes para seu falecimento. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyeus, já declarou que a Classificação Internacional de Doenças “nos permite entender muito sobre o que faz as pessoas adoecerem e morrerem, e tomar medidas para prevenir o sofrimento e salvar vidas”. Incluir velhice como doença na CID-11 será uma contradição, além de não indicar melhorias significativas em relação às versões anteriores.

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