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Gabriel Trigueiro

A direita e o seu eterno problema racial

Relativizar o escravismo é um erro não apenas de humanidade, mas científico

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Gabriel Trigueiro

Doutor em história pelo Programa de História Comparada da UFRJ, é especialista em pensamento liberal e conservador

Acompanhar o desenvolvimento da nova direita brasileira, quando se conhece a origem e a ascensão do movimento conservador nos EUA, é viver em um estado de eterno "déjà-vu".

A nova direita brasileira tenta, por mimetismo e falta de imaginação, dar tempero tropical a uma retórica tipicamente norte-americana de guerra cultural. E o tema racial é um caldo onde o conservador recorrentemente despeja a sua cansada narrativa de que é necessário combater inimigos invisíveis como o “vitimismo dos ativistas” e coisas desse quilate.

O conservador parte do pressuposto presunçoso de que o conservadorismo sequer é uma ideologia. Mas se o conservadorismo não possui um texto fundacional, nem um corpo doutrinário bem definido, como o socialismo e o liberalismo, logo não sobra muita coisa além da contação de “causos”. Essa pobreza teórica é disfarçada pomposamente como “empiria” —o que, aliás, é pouco, muito pouco, para se ler a política, a cultura, as relações raciais e o que quer que seja.

Para fazer uma leitura complexa das relações raciais é necessário passar do pensamento individual para o coletivo —a partir de um raciocínio sistemático e não apenas calcado em anedotas. Sempre haverá exemplos esparsos para corroborar qualquer teoria. Mas indivíduos se juntam coletivamente a outros casos, o que cria padrões, certo?

Nesse sentido, citar exemplos pinçados de “negras prósperas no ápice da escravidão”, como fez recentemente o colunista Leandro Narloch nesta Folha (“Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro”, 29/9), não torna esses casos uma verdade sociológica, coletiva. E usá-los para relativizar as marcas profundas da escravidão brasileira é um erro não apenas de humanidade, mas também científico.

A critério de comparação, é interessante olhar para o caso norte-americano. Murray Rothbard, um dos expoentes da direita de lá, em 1992 lamentou a derrota do republicano e supremacista branco David Duke, antiga liderança da Ku Klux Klan. Para Rothbard, a solução política para avançar sua agenda econômica liberal radical, considerando que a sociedade nos EUA não era favorável à ideia de Estado mínimo, era promover uma aliança com populistas radicais motivados por ressentimentos de contornos raciais. Não à toa há uma interseção política incômoda entre libertários e supremacistas brancos.

Não dá para esquecer que boa parte da retórica contrária à “Brown v. Board of Education” —a decisão da Suprema Corte norte-americana, em 1954, julgando inconstitucional as divisões raciais entre estudantes brancos e negros nas escolas públicas do país— foi feita com um discurso libertário radical de “states rights” (direitos dos estados). O racismo nos EUA do século 20, de conservadores e libertários, não era tanto de base cientificista, mas sim liberal e hiperindividualista.

Aqui no Brasil, Olavo de Carvalho afirmou no artigo “A verdadeira cultura negra”, publicado na Folha em 1997, que “Cultura negra para mim é o Aleijadinho, é Gonçalves Dias, é Machado de Assis, é Capistrano de Abreu, é Cruz e Souza, é Lima Barreto. Quer Vossa Senhoria me explicar como esses negros e mulatos puderam subir tão alto, numa sociedade escravocrata, enquanto seus netos e bisnetos, desfrutando das liberdades republicanas, paparicados pela ‘intelligensia’ universitária, não conseguem hoje produzir senão samba, funk e macumba (...)?”.

Como os conservadores reclamam para si esse status não ideológico, falta-lhes uma imaginação sociológica, e o que sobra são narrativas heroicas de indivíduos que, por seu suposto mérito, dariam uma explicação totalizante sobre a realidade. Os textos de Narloch e Olavo são sintomas de um quadro maior.

A visão de mundo conservadora tem um problema, na verdade de natureza teórica, que é a dificuldade em ler com precisão as relações raciais, porque o pensamento conservador é avesso à sociologia. E isso é observável no desenvolvimento do movimento conservador nos EUA, mas também na ascensão da nova direita brasileira, que cresce e se articula à sua imagem e semelhança.

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