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João Varella

A livraria sem alma

Num mundo disperso, livros enfrentam batalha desigual, mas apaixonante

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João Varella

Fundador da editora Lote 42 e das livrarias Sala Tatuí e Banca Tatuí; é autor de ‘Videogame, a Evolução da Arte’ e ‘42 Haicais e 7 Ilustrações’, entre outros

Livros são um abrigo para a atual crise espiritual e intelectual sob o signo do excesso de estímulo tecnológico. É um raro espaço de absoluta privacidade, sem publicidade, sem algoritmo, sem duvidosos termos de acesso. Promovem uma experiência humana profunda.

É cada vez menor, porém, a quantidade de pessoas que reconhecem esse refúgio. Os livros perdem relevância, embora o interesse por narrativas siga em vigor. Prova disso é a pesquisa Hábitos Culturais 2, que mostra música, filmes, séries e videogame como as linguagens preferenciais do ambiente online.

A Covid-19 bagunçou estatísticas, mas dados anteriores demonstravam queda de faturamento no mercado editorial em praticamente todo o mundo. A concorrência é feroz, a oferta de entretenimento é vasta e acessível, num arranjo monopolizado por empresas bilionárias. Se antes comparávamos o preço de uma publicação a latas de cerveja, o paralelo agora se dá em meses de assinatura de streaming.

Esses cotejos tumultuam ainda mais a percepção de valor do livro no Brasil, vítima do atroz déficit educacional. Há também vícios na cadeia do livro que contribuem para esse cenário. Um caso é uma loja situada no aeroporto de Curitiba, uma livraria sem alma. Nenhum ser humano cuida do local. Há apenas uma máquina de cartão para o próprio cliente operar, uma pilha de sacolas plásticas tipo de supermercado e um cartaz avisando que qualquer exemplar custa R$ 20. Em outros endereços, a mesma rede cobra ainda menos; na internet, oferece livros por centavos. As obras são novas, iguais àquelas ofertadas em uma livraria convencional.

É um saldão, obras encalhadas que, na novilíngua dos patrões, virou “livro de oportunidade”. A livraria desalmada disfarça como relação de confiança um severo corte de custo. A menina que roubava livros é ficção ou uma perda insignificante no caixa. Alguém se atreve a fazer isso com vestuário, brinquedos, celular ou produtos pet?

Para entender como esses exemplares chegaram ao ponto de serem largados à própria sorte num aeroporto é preciso seguir o dinheiro. Isso se deve à prática editorial de editar uma quantidade imensa de títulos por ano, apostando que alguns façam sucesso e banquem o faturamento total da firma. Manobras contábeis feitas em escritórios fechados que acabam por atingir em cheio a percepção do leitor, alheio às negociatas. Não tenho nada contra ganhar dinheiro, desde que não faça mal aos outros, à cultura.

Casos como o do aeroporto, que se multiplicam em grandes eventos do livro, são um percalço para uma editora cobrar um preço justo e assim remunerar participantes do processo de edição, como revisores, preparadores, designers, além, é claro, dos autores.

Com o advento de tecnologia que permite impressões de baixa tiragem, é inexplicável a persistência da alta quantidade de cópias. A consequência é uma piora na qualidade geral do processo de edição. Vide o caso recente do “Abecê da Liberdade”, livro voltado para o público infantil que colocava crianças brincando e se divertindo em um navio que transportava pessoas escravizadas. Sem entrar na discussão do mérito, fato é que a editora tirou a obra de circulação, mas só depois da pressão das redes sociais. Antes era um produto comum, com ao menos duas edições e circulação de milhares de exemplares.

O objetivo é correr atrás da discussão do momento de qualquer jeito, ganhar escala e diluir despesas. Com sorte, isso chega ao bolso do leitor. É, porém, uma corrida impossível. Jamais o preço do livro ficará abaixo do entretenimento digital, e isso nem é lá tão importante. De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura, 84% dos não leitores acham livros desinteressantes. Simples assim.

É hora de o livro entregar o que essa mídia tem de único. A literatura pode ser um oásis em meio às telas e ao caos. Livros são à prova da obsolescência programada. Assim como sempre se adaptaram às solicitações de seu contexto, uma nova transmutação se faz necessária agora. O livro tem uma missão relevante nesse mundo disperso. Uma batalha desigual e apaixonante.

* Apresentarei estas e outras ideias no simpósio “Por uma lei da bibliodiversidade”, desta quarta (13) a sexta-feira (15); programação em http://www.iea.usp.br/eventos/lei-lang-40-anos-depois

TENDÊNCIAS / DEBATES
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