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Juracilda Veiga e Maria Cecilia de Sá Porto

Contra guerra total, indígenas respondem com unidade

Povos originários assumiram protagonismo na defesa mundial da Amazônia

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Juracilda Veiga

Doutora em ciências sociais, antropóloga concursada da Funai (2006-18) e coordenadora-geral da Kamuri - Indigenismo, Ação Ambiental, Cultura e Educação

Maria Cecilia de Sá Porto

Mestre em antropologia e doutora em comunicação, é assessora da Kamuri

Se, para os povos indígenas do Brasil, houve alguma coisa de bom na era Bolsonaro, foi o sucesso da resposta deles, articulada pelas lideranças em torno de uma identidade coletiva capaz de enfrentar a escalada de violência promovida pelo atual governo. Esse modelo de ação tem transformado a diversidade cultural e linguística das várias etnias em um tecido multiforme e polifônico, porém único.

Nos acampamentos e marchas em Brasília, o espaço comum é traçado nas lembranças de um passado atroz e na experiência cotidiana de afronta aos seus direitos básicos, compartilhadas por indígenas de todas as etnias. A partir dessa estratégia de luta contra alvos comuns, os povos indígenas se projetaram como um dos movimentos sociais mais importantes da atualidade.

A articulação dos indígenas brasileiros é inovadora por natureza, não só pela diversidade de seus membros e por juntar ancestralidade e modernidade em uma mesma frase, mas por saber estender suas bandeiras além das fronteiras do país e até de suas próprias lutas.

Nenhum tema está mais presente na agenda de líderes estrangeiros do que o aquecimento global e suas consequências para a economia mundial e o bem-estar dos cidadãos planetários. E é exatamente aí que o protagonismo do movimento indígena brasileiro se consolida. Sua presença na Amazônia é a esperança de salvação do mais crucial bioma mundial. E seus gritos de socorro, levados à ONU, à OEA (Organização dos Estados Americanos) e à União Europeia, têm sido acolhidos e levados a sério.

O protagonismo mundial dos indígenas na defesa da Amazônia, vista como recurso de segurança global, intensificou-se nos anos 1980, com destaque para o cacique Raoni, recebido por dois papas, celebridades e chefes de Estado em todo o mundo.

Mas não foi só a defesa do meio ambiente que tornou os indígenas conhecidos no planeta. Apesar de nunca terem tido a sua espiritualidade e pensamento levados em conta pelas sociedades desenvolvimentistas, que lhes impuseram a pecha de "selvagens", os indígenas brasileiros conquistaram públicos que querem ouvir o que têm a dizer sobre a vida e o mundo.

A projeção do filme "A Queda do Céu", em Berlim, e a edição do livro com o mesmo título levaram as palavras do cacique Davi Kopenawa a um público disposto a enfrentar as barreiras de sua própria racionalidade para se envolver em outra forma de pensar, cujas chaves de significação são ditadas pela lógica das relações dos humanos com os "xapiri", que chamamos de espíritos.

Percorrendo outro caminho, Ailton Krenak, autor de "Ideias para Adiar o Fim do Mundo", utiliza, em suas palestras no país e no exterior, os próprios instrumentos do pensamento filosófico ocidental, como o conceito de modernidade líquida, de Zygmunt Bauman, para fazer a crítica do modelo civilizatório capitalista e sugerir uma nova forma de intervenção no mundo, inspirada nos vínculos dos indígenas com a terra.

Os indígenas enfrentam uma violência cultural, além da econômica, que tenta destitui-los não só da terra, mas também da sua humanidade. Foram chamados de "bugres", expressão pejorativa com a qual os caçadores de indígenas, os bugreiros, justificavam sua cruzada contra eles. A palavra vem do francês "bougre", que significa "herético", como se a cristandade fosse o critério definidor de "humanidade".

Longe de estar superada, essa guerra cultural prossegue devastadora, justificando —agora sob o manto de um "marco temporal"— a remoção dos indígenas de suas terras "improdutivas", em uma atualização da noção de progresso como um destino natural da humanidade, da qual esses povos não fazem parte.

Em uma resposta à altura dessa violência repaginada, as mulheres indígenas lançaram a campanha "Nossos Corpos, Nossos Territórios", que percebe a amplitude da guerra total que atinge seus povos: no corpo, que abriga seu espírito, e no território, que abriga o passado e o futuro de suas culturas. Assim, sua luta expõe o verdadeiro nome deste modelo de progresso: barbárie.

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