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Negacionismo da casa-grande

Aberrações como a de Narloch se vulgarizam e chegam às salas de aula

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Leandro Narloch é um dos maiores pensadores atuais do humanitismo. Ao escrever, em coluna nesta Folha, que foi possível a certos escravizados triunfar por mérito e esforço próprios (“Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro”; 29/9), sugere também ser possível triunfar em uma sociedade injusta e desigual como a nossa. Ao defender abertamente a ideia de que as distorções hierárquicas brasileiras são legítimas, sua coluna parece ter saído diretamente das páginas do jornal Atalaia, do romance de Machado de Assis.

A diáspora africana, quatro séculos de escravidão, documentos, relatos, pesquisas e milhões de brasileiros descendentes de africanos —nada disso é páreo para a história pessoal de algumas mulheres.

A escrita da história envolve disputas, o que nos exige compromisso contra todo um arsenal de horrores que alimentou, por exemplo, o fascismo. Por tamanha responsabilidade, o trabalho do historiador é um exercício ético constante; já a produção de caricaturas e outras formas textuais, não.

Defensor da meritocracia nos trópicos, podemos já antever a reação do jornalista não apenas a este, mas também a outros textos: ver-se como uma pobre mente pensante, supostamente autônoma, vítima de um silenciamento, que teria ousado desafiar o status quo.

O historiador Pierre Vidal-Naquet já nos alertava em seu trabalho sobre o Holocausto, “Os Assassinos da Memória”, de que podemos e devemos sempre discutir sobre revisionistas, mas jamais com os revisionistas.

Certo mito apaziguador diz que a história do Brasil é caracterizada por um perfil relativamente pacífico, o que é rapidamente desmentido por inúmeras guerras, rebeliões, sedições e revoltas contra um projeto de país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, concentração fundiária, aldeias mortas, tambores silenciados, truculência oligárquica e chicote dos capatazes, entre outros.

Mesmo assim, o colunista insiste na manutenção do que a herança escravista produz de pior: a negação da resistência negra e o elogio àqueles escravizados que, inseridos na dinâmica brutal do escravismo, alcançaram a plena realização como senhores de escravizados.

Os horrores da escravidão e sua herança para a sociedade brasileira estão presentes em farta documentação e foram objeto de numerosos estudos de pesquisadores brasileiros. Contudo, historiadores e suas obras raramente ganham a projeção do texto falacioso e racista de Narloch.

A irrelevância das bobagens que foram escritas não merece resposta no campo da historiografia. Basta reconhecer sua excepcionalidade e a persistência do preconceito, numa sociedade em que a elite era quase uniformemente branca —e continua a sê-lo. O sucesso parcial dentro de parâmetros manifestamente injustos não os legitimam; antes, aumentam seu horror.

O problema maior reside no fato de que essas aberrações se vulgarizam e chegam às salas de aula, obrigando educadores a confrontá-las. É por conta da projeção que textos dessa natureza ganham que todos os dias professores entram em sala de aula para reafirmar o óbvio, que escravidão, nazismo e ditadura existiram e devem ser condenados —ou que vacinas salvam vidas.

Não tenhamos ilusões. Ao combater e desqualificar a memória do sofrimento e da luta dos mortos, gente como Narloch pretende —mirando a casa-grande— impedir que elas sejam centelhas capazes de animar as lutas dos vivos em nome de uma sociedade mais justa e fraterna. Daí sua tentativa francamente bizarra de pautar o movimento negro, cinicamente sugerindo a valorização daqueles que participaram do sistema de exploração em vez dos que o contestaram.

Dar espaço e, consequentemente, projeção a esse tipo de argumento não é um exercício de democracia. O negacionismo é tal qual o abraço do afogado: quando se dialoga com ideias falaciosas, não há o que ser salvo; simplesmente afunda-se junto, pois o que procuram não é debate, mas a provocação.

Mais importante até do que uma resposta ao colunista e seus congêneres é uma resposta da própria Folha, pois sua busca pela “pluralidade de ideias” degenerou-se em palanque justamente para aqueles que são contra essa diversidade, os quais não hesitam em usar de má-fé para distorcer a realidade e defender a hierarquia excludente que marcou a nossa história. É esse o papel de um jornal a serviço da democracia?

Gilberto da Silva Francisco
Professor do Departamento de História da Unifesp

Rodrigo Nagem de Aragão
Mestrando em história pela USP

Ana Paula Salviatti
Historiadora e doutoranda em economia pela Unicamp

Dennis Almeida
Professor de história

* Outros 27 historiadores do coletivo História a Contrapelo subscrevem este artigo

TENDÊNCIAS / DEBATES
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