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Celso Athayde

O ESG e as favelas

Avanço da economia nas comunidades pode ser a grande revolução brasileira

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Celso Athayde

Fundador da Cufa (Central Única das Favelas) e presidente da Favela Holding

Na minha opinião, a próxima revolução virá das favelas. Não uma revolução política, mas econômica. É fácil compreender o potencial da população que habita esses “aglomerados subnormais”, como classifica o IBGE. Se fossem um país, as favelas brasileiras teriam um PIB superior ao da Bolívia. O que as impede de se desenvolver e se tornar um motor de crescimento é um modelo empresarial antiquado, que enxerga as quebradas como locais de miséria. Favela não é carência, é potência.

Fui camelô em Madureira, no Rio de Janeiro. Os grandes mercados informais dão uma dimensão do desperdício econômico que se tem com a não inclusão das favelas. Eles são formados por empreendedores e frequentados por pessoas produtivas para a sociedade. As favelas consomem, por ano, mais de R$ 120 bilhões. Mas são mercados desestruturados, ineficientes. Eles precisam de um olhar capitalista e de um modelo que permita dar escala aos negócios. O conceito de ESG é uma oportunidade para mudar esse quadro.

O presidente da Favela Holding, Celso Athayde - Renato Stockler - 12.mai.20/Na Lata

Ambiental, social e governança: o que chamo de MDF, Modelo de Desenvolvimento para as Favelas.
Em tese, empresas que adotam o modelo ESG (sigla em inglês para “Environmental, Social and corporate Governance”, algo como melhores práticas ambientais, sociais e de governança em português) buscam gerar valor para todas as partes envolvidas (“stakeholders”) e não apenas a seus acionistas. Há nesse pensamento uma intersecção clara entre a atividade essencialmente capitalista, voltada para o lucro, e o trabalho realizado pelo terceiro setor.

Os moradores das favelas conhecem como ninguém essa dinâmica. A desestruturação econômica força a organização das transações em modelos comunitários e são viabilizadas por meio da confiança mútua, sem a regulação de uma estrutura burocrática (Estado). Essa confiança é adquirida no convívio e, em maior escala, nos centros comunitários. Todo negócio criado na favela é um negócio de impacto social —já os negócios criados no asfalto com discurso de impacto social, mas cujos recursos ficam no asfalto, são o que chamo de “caô social”.

O empreendedorismo na base da pirâmide é um processo antropofágico. A favela assimila ideias e conceitos externos e os adapta à própria realidade, produzindo um modelo econômico que congrega a necessidade de fortalecer a comunidade e a busca pela melhoria de vida.

A criação da Favela Holding, conglomerado de empresas que lidero, é a síntese desse processo. Ela nasce da demanda por acesso a bens de consumo. Seu desenvolvimento se dá a partir da exploração construtiva dos laços comunitários, o que permite a criação de uma distribuidora para atender grandes marcas, como P&G e Natura, entre outras, que não tinham acesso aos territórios pela falta de convivência ali. A logística é toda operada por entregadores vindos do sistema penitenciário.

Desse primeiro contato entre a economia antropofágica da favela e a eficiência tecnoburocrata das multinacionais surgem mais de uma dezena de negócios associados, envolvendo agência de viagens, de propaganda, serviços financeiros, empresa de comunicação etc. que hoje fazem parte da F-holding. E o processo não vai parar. Em novembro, lançaremos a Favela Money, a primeira grande empresa de venda e meio de pagamento online das favelas com investimento de alguns milhões de reais.

A favela, da forma como ela é, foi o que possibilitou a criação de um empreendimento desse porte. É preciso olhar para esses territórios como focos de desenvolvimento de modelos econômicos singulares e eficientes para as condições estabelecidas, que são de carência de Estado e infraestrutura, não de capital humano. E partir dessa realidade para criar negócios em escala, que ampliem o impacto positivo da atividade econômica.

Para isso, as empresas devem se associar às favelas, numa espécie de “ESG paralelo”, retroalimentando o processo endêmico de geração de relacionamentos e trocas típico das periferias. A favela não quer viver como pedinte. Se ela produz é para ter acesso ao capital e melhorar de vida.

Essa é a essência do ESG? Se for, junte-se a nós. Nas favelas, essa revolução começou faz tempo.

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