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Guilherme Guimarães Feliciano e Mauro de Azevedo Menezes

Sobre prevaricações: o limite entre o político e o ilícito

No Estado de Direito, há contenções jurídicas para as escolhas políticas

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Guilherme Guimarães Feliciano

Juiz do Trabalho, é doutor em direito penal (USP) e processual civil (Universidade de Lisboa) e professor associado do Departamento de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP

Mauro de Azevedo Menezes

Advogado, é ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (2016-2018, governos Dilma e Temer), mestre em direito público e doutorando em ciências jurídicas e políticas

Atribui-se a Otto von Bismarck a afirmação de que “a política é a arte do possível”; ou, em derivação, a arte das escolhas. Nos Estados democráticos de Direito, porém, há contenções jurídicas para as escolhas políticas. Entender isso é crucial para a correta compreensão técnica das atuais polêmicas que conflagram o país.

Há pouco mais de três meses, o presidente da República expressou a convicção de que “prevaricação se aplica a servidor público, não a mim”. Há, na afirmação, grande impropriedade jurídica. Ignora-se o texto do art. 327 do Código Penal, pelo qual “considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” —e isso inclui chefes do Poder Executivo, que podem prevaricar, como já entendeu o próprio STF (HC 68.376). O presidente da República, na verdade, é o funcionário público nº 1 da burocracia estatal e, como tal, seu dever de moralidade (CF, art. 37) inclui a incumbência precípua de reprimir ações delituosas nas suas hierarquias, uma vez ciente de tais desvios.

Consta que o presidente teria sido alertado por parlamentar de sua própria base aliada sobre a ocorrência de indícios de tráfico de influência e corrupção passiva, no âmbito do Ministério da Saúde, para a aquisição da vacina Covaxin. A informação sugeriria o risco de celebração de contratos superfaturados.

Conforme depoimentos prestados à CPI da Covid, ademais, Jair Bolsonaro teria demonstrado suspeitar das condutas de seu próprio líder no Congresso, Ricardo Barros (PP-PR). E, apesar disso tudo, não teria levado o caso à apuração policial.

Eis aqui justamente o ponto nodal do debate, para fins penais, a distinguir o discricionário (“podia” fazer) do mandatório (“devia” fazer). Nos termos do art. 319 do Código Penal, é crime de prevaricação “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.

Se o presidente tinha ciência do caráter criminoso dos fatos informados, e se eles eram verossímeis, deveria mandar apurá-los, pelas vias oficiais, ainda que tivesse dúvidas sobre o caráter dos interlocutores.

Esse era o esperado “ato de ofício”; ato voluntário para qualquer do povo (CPP, art. 5º, §3º), obrigatório para a autoridade pública. Se não o praticou efetivamente, ou se o retardou, pode ter incorrido em crime de responsabilidade (art. 9º, 3, da lei 1.079/1950: “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”).

Ademais disso, se se absteve com uma especial intenção de não agir, a saber, a de satisfazer interesse pessoal —como, por exemplo, preservar-se politicamente, ou preservar aliados políticos, ou não molestar certos envolvidos—, terá prevaricado, ao menos em tese.

Situação similar se deu, ademais, no último dia 7 de setembro, quando o presidente, ao discursar na avenida Paulista para mais de 100 mil pessoas, anunciou que não cumpriria mais as decisões do ministro do Supremo Alexandre de Moraes.

Antecipou, por assim dizer, a sua predisposição íntima de prevaricar, porque o cumprimento de ordens judiciais, para o servidor público, é ato de ofício; e, ao resistir por entendê-las “inconstitucionais” —quando a Constituição reserva ao STF a palavra final sobre a constitucionalidade dos atos jurídicos no Brasil—, ou por entendê-las prejudiciais ao seu grupo político, estaria outra vez omitindo ato de ofício por sentimento ou interesse pessoal. Haveria, ademais, outro crime de responsabilidade (a autorizar o impeachment): o do art. 12, 2, da citada lei 1.079/1950 (“recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo”). Dois dias depois, retratou-se.

Cuidávamos, na abertura, do possível e do ético. Para o encerramento, cabe bem lembrar o jurisconsulto romano Paulo: “non omne quod licet honestum est” (“nem tudo que é lícito é honesto”). E cabe, talvez, complementá-lo: nem tudo o que é oportuno —inclusive politicamente— é lícito. Os espaços de licitude construídos pela Constituição Federal têm desenhos bem mais complexos do que aqueles desenhados com quatro linhas.

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