A COP26 e o motor de rabeta

A Amazônia pode elevar o Brasil ao status inédito de primeira potência ambiental global

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Luciano Huck

Apresentador de TV e empresário

Enquanto lideranças globais, à exceção de Jair Bolsonaro, se reúnem na Escócia para a 26ª Conferência do Clima das Organizações das Nações Unidas, a COP26, o pescador Roberto Cordeiro e sua esposa, Josiane, aguardam pelo nascimento do sexto filho, em uma comunidade ribeirinha na Amazônia. A criança deve nascer em casa, já que Roberto e Josiane moram a muitas horas, de barco, do centro urbano mais próximo, a cidade de Oriximiná. Isso não parece preocupá-los: seus outros cinco filhos nasceram exatamente desta forma.

Estamos em um pequeno afluente do rio Trombetas, norte do Pará, no Quilombo Paraná do Abuí – um dos dez territórios quilombolas titulados naquela região, que concentra 80%, em área, de todos os quilombos titulados no Brasil. Tudo em volta é verde, um eterno verde, já que o rio Trombetas está dentro do maior bloco de floresta tropical protegida do mundo. Este bloco de floresta tem um nome: Calha Norte —nomenclatura em desuso por lembrar um terrível projeto de instalar uma hidroelétrica na região.

O apresentador Luciano Huck com a família do pescador Roberto Cordeiro e de sua esposa, Josiane, em uma comunidade ribeirinha da região Amazônica
O apresentador Luciano Huck com a família do pescador Roberto Cordeiro e de sua esposa, Josiane, em uma comunidade ribeirinha da região Amazônica - Luciano Huck/Folhapress

Com 22 milhões de hectares —​quase o tamanho do estado de São Paulo—, a Calha Norte compreende nove municípios, que, por sua vez, abrigam dez territórios quilombolas titulados, seis terras indígenas, quatro unidades de conservação federais e sete estaduais (incluindo a Estação Ecológica Grão-Pará, a maior área protegida em floresta tropical do mundo, com 4,2 milhões de hectares). Ou seja: um paraíso, ou uma gigantesca "fábrica" de biodiversidade e de captura de carbono, que só se manteve assim, conservada, devido a um ciclo virtuoso que inclui o trabalho de indígenas e quilombolas —os verdadeiros guardiões da floresta— e, claro, devido à vontade política de governos e grupos da sociedade civil que entenderam haver, ali, um imenso potencial.

Numa floresta de medidas tão imensas, com rios tão famosos — o Negro, o Solimões, o Tapajós, o Xingu e claro, o Amazonas— , o rio Trombetas pode até parecer "menor". Ledo engado, já que nada na Amazônia é pequeno. O Trombetas nasce na fronteira do Brasil com o Suriname e corre 700 quilômetros antes de desaguar no Amazonas. No período da escravidão, o rio acabou virando uma rota de fuga de negros escravizados, que fugiam de plantações de cacau nos municípios de Óbidos, Alenquer e Santarém. No Trombetas, essa população encontrou uma barreira natural —quedas d’água, que tornavam a navegação bastante complicada, impossibilitando os captores de avançar. Lá formaram vários quilombos escondidos, mata adentro. Depois da abolição, formaram também comunidades nas margens do rio, entre elas, a Paraná do Abuí.

Roberto e sua família vivem em uma região riquíssima em biodiversidade, mas continuam pobres. A tecnologia foi capaz de fazer chegar aos rincões da floresta todo tipo de informação; de bens de consumo a hábitos de comportamento. Mas essa mesma tecnologia ainda não conseguiu levar a floresta para os corações de quem mora nos centros urbanos. Nós falamos sobre Amazônia, nós sabemos da importância da Amazônia, mas a verdade é que nós ainda não conhecemos a Amazônia. Para grande parte dos brasileiros, a Amazônia é vista quase como um país estrangeiro. Ela existe na nossa cabeça, pela importância que tem no debate climático, mas ainda não entrou em nossos corações. O Brasil já foi visto como o país do samba, ou do futebol. Pois chegou a hora de sermos vistos como o país da Amazônia.

Eu vejo potência quando olho para a Amazônia: potência na floresta, nos animais, nas sementes, na água que as árvores transpiram —e que acaba por viajar, pelo céu, para irrigar com chuvas as plantações no Centro-Oeste e no Sudeste. Vejo potência na biodiversidade infinita e, claro, no seu povo. Roberto, o pescador, tem absoluta ciência de pertencer àquele lindo lugar e do papel que ocupa como guardião do nosso bem coletivo mais valioso. Mas a verdade é que a renda proveniente da pesca, da farinha de mandioca e da produção de sabonetes à base de seiva não é suficiente para garantir um novo motor para a sua rabeta, uma nova televisão, ou uma geladeira —bens que sua família almeja. Pior: sua renda não garante condições mínimas de saúde para o pequeno rebento que está por chegar.

Como já registrei em artigos anteriores, não pretendo sair do debate público. Sigo, portanto, em busca de conhecimento para construir pontes entre a população e a academia, para contribuir no debate, acreditando que iremos em breve acordar do pesadelo institucional e político que estamos vivendo. Acredito que o bom senso e a capacidade de diálogo ainda podem nos levar a ser a maior potência verde do mundo, líder em descarbonizarão, e em produção de alimentos —sem que isso precise acarretar na destruição da nossa biodiversidade.

Mas como chegar a esse ponto?

Em primeiro lugar, olhando com um interesse genuíno, afetivo e generoso para a Amazônia. Olhando para a floresta e para os brasileiros que vivem na floresta. Porque de nada adiantarão os vários projetos de desenvolvimento e conservação se não colocarmos os 25 milhões de brasileiros que habitam a Amazônia como protagonistas.

A Amazônia tem poder identitário. Ela pode definir a identidade do país, um Brasil culturalmente diverso e gigante pela própria natureza, com uma nova organização social: a da primeira sociedade florestal desenvolvida do planeta.

A Amazônia tem também o poder econômico. Existe um mercado global anual de 176 bilhões de dólares para produtos da floresta, segundo um levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o Imazon, que será citado por representantes do Banco Interamericano na COP26. E sabe qual é a participação do Brasil neste mercado, agora? Menos de 0,2%. Ou seja: há um potencial gigantesco de exploração de produtos como o camu-camu, uma espécie de acerola típica da Amazônia, ou o cacau, planta domesticada pelos indígenas da Amazônia e que movimenta R$ 10 bilhões por ano no mundo. Basta sabermos abraçar essa oportunidade.

Há ainda uma terceira camada de rentabilização da floresta, essa ainda num campo mais hipotético, mas já em pesquisa: a de produtos ainda não identificados —moléculas e enzimas que podem gerar remédios, cremes, materiais cirúrgicos, de construção, o que pudermos imaginar. A Amazônia pode ser o palco da nossa revolução. Uma revolução tripla, movida pelos saberes da floresta, por novas formas de produção compatíveis com uma economia verde, e por novas formas de gestão e governança que a curadoria de um bem público exige.

A casa onde vivem Roberto e Josiane é um retrato clássico das casas ribeirinhas que se espalham às margens dos milhares de rios que serpenteiam a bacia hidrográfica da Amazônia. O piso é feito de madeira nobre, resistente, tirada da floresta e elevada a cerca de 1 metro do solo, para evitar a água na época das cheias. As paredes são feitas dessas mesmas tábuas, posicionadas verticalmente, lado a lado. Dentro da casa, tecidos fazem as vezes de portas, dividindo os três pequenos ambientes: uma cozinha —que se limita a um giral com panelas—, uma sala sem móveis —à exceção do armário que ostenta a velha televisão—, e um quarto com apenas um colchão e duas redes penduradas, onde dorme o casal e os cinco filhos, sem conforto ou privacidade. Não há geladeira. Os alimentos —basicamente peixe e farinha de mandioca— são preparados em um forno à lenha, do lado de fora. Mesmo vivendo na maior bacia hidrográfica do planeta, a água é um problema não só para a família de Roberto e Josiane, mas para a maioria das populações ribeirinhas. Ela é captada diretamente do rio, sem tratamento, o que acarreta em muitos problemas de saúde, principalmente para as crianças.

O casal e sua família vivem em um dos locais mais preservados da Amazônia, num momento em que as discussões climáticas dominam a pauta mundial. Nos últimos 200 anos, a temperatura da Terra aumentou 1,1°C. No Acordo de Paris, firmado em dezembro de 2015, 195 países se comprometeram a contribuir para limitar o aumento de temperatura a 1,5ºC até o final do século.

Imagem mostra madeiras e árvores carobnizadas em desmatamento no município de Apui, no sul do Amazonas
Desmatamento no município de Apui, no sul do Amazonas - Lalo de Almeida - 20.ago.20/ Folhapress

No entanto, muitos cientistas acreditam que o acréscimo possa chegar a 3°C —previsão estampada na capa da "The Economist" recentemente. Há um cenário ainda mais catastrófico, de 5°C mais quente, o que provocaria um aumento de 25 metros no nível do mar. Um relatório da ONU publicado na semana passada listou cidades como Recife, Rio de Janeiro e Santos como as mais ameaçadas pelas mudanças climáticas no Brasil. A tragédia provocada pela pandemia da Covid-19 será pequena se chegarmos a um quadro climático irreversível. Aí sim estaremos diante da mãe de todas as pandemias, para a qual não teremos vacinas capazes de mitigar os efeitos. E esse quadro não mora apenas num futuro hipotético. Ele mora aqui, agora —vide as queimadas no Pantanal ou as nuvens de fumaça no interior de São Paulo. Já somos a primeira geração afetada pelo aquecimento global.

Para evitar uma catástrofe ainda maior, o planeta precisa da floresta, especialmente da tropical. O carbono é emitido principalmente a partir de combustíveis fósseis e da biomassa. E a função da floresta é justamente estocar carbono e capturá-lo da atmosfera, além de servir como uma espécie de "carburador" do mundo, resfriando-o. Ou seja, quando derrubada, a floresta libera o carbono contido nela e ainda deixa de absorvê-lo do ar.

Venho dialogando com vários setores da sociedade, formando um grupo diverso em saberes e experiências, e com um interesse em comum: pensar um projeto de país. Um projeto que contemple a arquitetura, a engenharia e a forma de execução da nossa máquina pública. O Brasil até hoje não teve projeto de país. Só projetos de poder. E a Amazônia, com a potência ambiental que ela representa, tem que ser parte fundamental de um projeto ambicioso e viável.

A Amazônia pode elevar o Brasil a um status que nunca tivemos, tornando-o a primeira potência ambiental global —uma potência diretamente ligada ao futuro do planeta, mas também ao presente, em função das grandes oportunidades econômicas e estratégicas de uma economia baseada na Natureza. Isso nos dará relevância no mundo. Não duvido que a floresta, ou experiências tiradas da interação com a floresta, nos ajude a desenvolver os meios para resolver outros males sociais.

A Amazônia não é só riqueza natural e cultural; ela é também riqueza econômica para o Brasil. Países e empresas estão se engajando em objetivos de baixo carbono. Se fizermos um plano bem arquitetado, que seja generoso e inclusivo, com ambições de longo prazo, tenho certeza de que o mundo voltará a nos olhar com admiração. Deixaremos de "ostentar" o isolamento precário, o orgulho tosco de se colocar como um pária, qual visto na reunião do G20. E a Amazônia poderá então despertar um interesse econômico jamais visto, gerando qualidade de vida e de renda, para que Roberto e Josiane comprem a sonhada geladeira, ou o motor de rabeta, e para que seus filhos e futuros netos nasçam com apoio médico, e tenham mais condições financeiras —e portanto mais chances– de quem sabe frequentar uma universidade. Assim, o Brasil crescerá de maneira potente e sustentável, e finalmente seremos o país do futuro que merecemos ser. Eu acredito.

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