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João Paulo de Vasconcelos Aguiar

Curas milagrosas e a internet no Brasil

Projeto do governo pode gerar crise de confiança severa no ecossistema digital

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João Paulo de Vasconcelos Aguiar

Gerente de Comunicações para a América Latina da Internet Society

A pandemia evidenciou os riscos envolvidos na prescrição de tratamentos equivocados. Além de não lidar com os sintomas iniciais, a cura proposta traz complicações secundárias —em alguns casos, irreversíveis.

É o que se vê recentemente com as sucessivas tentativas de resolver, com soluções aparentemente simples e milagrosas, questões complexas acerca do uso da internet no Brasil.

Ao longo das últimas duas décadas, sobretudo a partir da experiência pioneira do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o país construiu um arcabouço legal exemplar para a regulação do ambiente digital. Essa tradição, contudo, vem sendo eclipsada por iniciativas unidimensionais, focadas apenas na tecnologia, buscando resolver problemas sociais profundos.

O horizonte atual está cheio delas, a exemplo da insistência do governo federal em avançar com o agora proposto pelo projeto de lei 3.227/2021. Partindo do argumento de defesa da liberdade de expressão, o PL altera as regras para a remoção de conteúdos nas redes sociais, determinando uma lista taxativa de "justas causas" para tal.

O governo Jair Bolsonaro argumenta que a proposta não impede a exclusão de conteúdos e perfis, "apenas combate arbitrariedades e exclusões injustificadas e duvidosas, que lesam os brasileiros e suas liberdades". A realidade, contudo, é que qualquer moderação que não se encaixe em uma das razões predeterminadas só pode ser autorizada pelo governo (ou após um longo processo na Justiça).

O projeto de lei, assim, não apenas não entrega a solução prometida como cria outros problemas, com implicações graves para a infraestrutura digital.

A lista de "justas causas", por exemplo, não leva em consideração diversas ameaças no ambiente digital. Autoriza a ação das redes sociais para conter a disseminação de vírus e outros códigos maliciosos, mas não trata de combate a spam, de ataques de negação de serviço, de desfiguração de páginas ou da possibilidade de remoção de links para sítios e formulários que buscam roubar dados dos usuários. Isso aumenta sobremaneira a insegurança e pode gerar uma crise de confiança severa no ecossistema digital brasileiro.

É essencial lembrar também que o desenvolvimento da atual legislação sobre a internet ocorreu de maneira colaborativa, com a participação dos setores público e privado e da sociedade civil. O movimento unilateral e repentino do governo Bolsonaro cria incertezas no ambiente regulatório e pode desencorajar o desenvolvimento de serviços e aplicações no país —afugentando investimentos e travando a inovação e o crescimento.

Defender o que estabeleceu o Marco Civil da Internet, aliás, nada tem a ver com conceder imunidade total a essas plataformas. A legislação já prevê formas de responsabilização desses entes por condutas equivocadas ou abusivas. E diversas outras provisões estão atualmente em discussão no Congresso. Dessa maneira, é de suma importância que os legisladores coloquem o país de volta aos trilhos do desenvolvimento que levaram ao marco civil.

Para além de discussões imediatas, é preciso compreender ainda que a internet é um ecossistema complexo, distribuído em inúmeras camadas de infraestrutura, serviços, aplicações e usuários. A intervenção num ponto pode gerar efeitos colaterais em outros (dentro e fora do país) e comprometer o que precisa ser um ambiente aberto, conectado globalmente, seguro e confiável.

Por isso, torna-se necessária —e urgente— a adoção de uma "avaliação de impacto" diante de decisões que digam respeito ao ecossistema digital.

A prática já é exigida pela Constituição no caso de atividades que possam causar significativa degradação do meio ambiente. No contexto da internet, se apresenta como um caminho para a elaboração de políticas públicas e marcos regulatórios capazes de assegurar o equilíbrio entre direitos dos usuários, segurança jurídica e inovação nos negócios, bem como o progresso socioeconômico sustentável.

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