Honremos os finados cuidando dos que ficam

Projeto de lei prevê pensão especial aos órfãos da Covid-19

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Karolina Bergamo

Jornalista, é gestora de mobilização do Nossas e enlutada da Covid-19

Foi num sábado chuvoso, em abril, que morreu meu pai, João Carlos Bergamo de Almeida, 66, vítima da Covid-19. Eu estava sentada no sofá, com a TV ligada e olhando a chuva na janela, quando recebi a ligação que pedia a presença da família.

Troquei de roupa e fiz o caminho de casa ao hospital, em São Paulo, já sabendo, sem que tivessem me contado, que meu pai havia morrido. No dia anterior, a médica havia ligado para dizer que ele tinha piorado muito e que provavelmente estava com alguma infecção secundária além da Covid. E que não sabia se resistiria: podíamos ir vê-lo naquela noite.

Eu, que estava há mais de um ano sem sair de casa, fui para o hospital ver meu pai entubado na UTI e, quem sabe, me despedir. Ele se foi no dia seguinte. Num dia 17. Não acho que tenha sido coincidência. São os símbolos da morte dos nossos tempos. Mais uma vítima da tragédia e do descaso.

A dor que veio junto é diferente de tudo o que eu já senti. "O luto é um lugar que nenhum de nós conhece até chegarmos lá. Sabemos que alguém perto de nós pode morrer, esperamos sentir um choque, mas não esperamos que este choque desloque nosso corpo da nossa mente", escreveu a jornalista norte-americana Joan Didion em seu livro "O ano do Pensamento Mágico", sobre a morte de seu marido e seu processo de luto.

Joan Didion at home in Hollywood
A jornalista e escritora Joan Didion em sua casa, nos Estados Unidos - Julian Wasser/Divulgação

A morte do meu pai me transformou numa outra pessoa. Transformou-me numa pessoa enlutada. E um dos meus primeiros choques foi perceber o quanto o luto é invisível na nossa sociedade. O quanto quase ninguém conseguia enxergar o que estava acontecendo comigo. Didion também escreveu sobre isso. Segundo a jornalista, as pessoas que perderam alguém são invisíveis e só conseguem ser vistas entre si. "Parecia que eu tinha atravessado um desses rios lendários que separam os vivos dos mortos, entrando num lugar onde só podia ser vista por aqueles que também tinham perdido alguém", escreveu.

Infelizmente, é assim. Mas não deveria ser. Principalmente quando estamos falando de um luto coletivo. Estima-se que mais de 5 milhões de brasileiros estão, assim como eu, vivendo a dor da perda de um ente querido para o coronavírus.

E um número significativo de enlutados se encontra em uma situação de vulnerabilidade ainda maior, pois perderam os provedores de suas famílias. Além de lidar com a dor e angústia da morte de uma pessoa amada, precisam passar pela ansiedade, medo e desamparo de não saber como vão se manter daqui para frente.

A pandemia é uma tragédia coletiva, e é nosso papel, enquanto sociedade, buscar formas de cuidar dos mais afetados. Seja você enlutado, ou não, essa causa também é sua.

É hora de tornar visível a vida e as necessidades dos enlutados e validar a importância dessa dor e dessa tragédia coletiva. E de cobrar por políticas públicas que atendam às nossas necessidades, começando pelos mais vulneráveis: as mais de 200 mil crianças e adolescentes que perderam pai, mãe ou guardião legal para a Covid-19.

O relatório final da CPI da Covid trouxe indicações de projetos que precisam ser aprovados pela urgente necessidade de garantir que familiares e dependentes de vítimas não fiquem desamparados pela perda dos provedores dos lares. Os órfãos da pandemia não podem esperar.

Não é apenas sobre garantir dignidade para o presente dessas crianças e adolescentes, mas também sobre garantir o futuro da nossa nação por meio desse cuidado.

E a decisão de pautar o projeto de lei que concede pensão especial aos órfãos da Covid-19 está nas mãos do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Você pode fazer parte da solução e se engajar nesta causa enviando uma mensagem para ele em www.emluta.org.br

Junte-se ao movimento de enlutados e pressione o presidente do Senado pela aprovação da pensão especial para órfãos da pandemia. Para que nesta terça-feira (2), Dia de Finados, possamos honrar nossos mortos cuidando dos sobreviventes.

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