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Soraia da Rosa Mendes, Priscila Akemi Beltrame e Ilana Muller

Lei Mariana Ferrer: mais um passo adiante

Exposição da vítima jamais pode ser considerada uma 'estratégia de defesa'

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Soraia da Rosa Mendes

Advogada e doutora em direito, Estado e Constituição (UnB)

Priscila Akemi Beltrame

Advogada e doutora em direito penal (USP)

Ilana Muller

Advogada e doutora em direito processual penal (USP)

Chegou, enfim, a lei Mariana Ferrer! Publicada em 22 de novembro, a lei 14.245 promoveu alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na lei 9.099/95 como uma resposta estatal à demanda feminista pelo reconhecimento dos abusos de que são vítimas, sem nenhuma redundância, as vítimas em crimes de gênero —em especial, os sexuais.

De acordo com a nova lei, na audiência de instrução e julgamento, há que zelar pela integridade física e psicológica da vítima. Não é possível, portanto, recorrer a informações, linguagem ou materiais que ofendam a sua dignidade. Tampouco será admitido o uso de circunstâncias alheias aos fatos que são objeto da apuração. Ou seja, não poderá ser perguntado à vítima sobre sua conduta social ou sobre qualquer fato como forma de atenuar o ato de violência ocorrido, jogando sob os ombros da ofendida o "ônus de provar" que é merecedora da proteção penal.

O empresário André Aranha foi absolvido da acusação de estupro de vulnerável contra a promotora de eventos Mariana Ferrer - Reprodução

Há muito tempo a literatura jurídica feminista, particularmente das ciências criminais, vem demonstrando que o direito não passa incólume ao simbolismo de gênero do qual o patriarcado se vale como instrumento dentro do sistema de Justiça. Pelo contrário, o processo penal e o modo de funcionamento da máquina judiciária não só reproduzem desigualdades baseadas no gênero, mas produzem novas e muitas desigualdades.

Como aponta a conclusão do relatório "Fracasso em Proteger", da Equality Now, as leis e práticas discriminatórias em matéria de violência sexual são violadoras institucionais de mulheres e meninas por todo o continente. Não à toa que o "Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero", recentemente editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), traz o conceito de violência institucional, entendendo-a como a situação na qual o Poder Judiciário permite a exposição da vítima mediante, por exemplo, a permissão de que a vida sexual pregressa de uma vítima de estupro seja exposta e devastada. Atitudes estas que, por sinal, jamais podem ser consideradas como "estratégias de defesa". Ao menos não sob a perspectiva ética da advocacia, da Constituição Federal e dos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos das vítimas firmados pelo Brasil.

A nova lei Mariana Ferrer avança muito e positivamente ao anunciar que a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas é passível de punição civil, penal e administrativa. Contudo, ainda precisamos de mudanças legislativas profundas no que se refere, por exemplo, à garantia de que em todos os casos de violência de gênero o depoimento das vítimas seja tomado de modo especial. Não somente apartado da presença do réu, mas também de qualquer outra pessoa ou circunstância que lhe possa gerar medo, constrangimento, vergonha ou autoculpabilização.

É esse o sentido que aponta a "Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres" ao instar os Estados-membros para, dentre outras obrigações, proverem mecanismos e procedimentos jurisdicionais acessíveis e sensíveis às necessidades das mulheres submetidas a violência e que assegurem o processamento justo dos casos".

De igual sorte, é como trata o tema a "Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher" ao determinar que é dever do Estado a criação de procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeita a violência, dentre os quais estão, por exemplo, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos. E a convenção diz mais: ela determina que sejam tomadas todas as medidas adequadas para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que dão respaldo à persistência e à tolerância da violência contra as mulheres.

Uma instrução criminal viciada pelo estereótipo de gênero e que não respeitou a dignidade humana da vítima não pode produzir uma decisão justa. Essa é a decorrência lógica. Em que pesem todo o sofrimento vivido por Mariana Ferrer (e pelas tantas outras Marianas desconhecidas) e o pesadelo daquela sessão de tortura processual, restou essa nova lei como um bom caminho para outras modificações que ainda precisam vir.

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