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Mariana Salomão Carrara

O cônjuge absoluto

Estivemos confinados, e ficou claro que duas pessoas não se completam

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Mariana Salomão Carrara

Escritora, é autora de ‘Se Deus Me Chamar Não Vou’ e ‘É Sempre a Hora da Nossa Morte Amém’ (ed. Nós)

O país ruiu, mas a instituição cônjuge segue inabalável. A primazia desse consorte continua operando normalmente. Porém, muitos anos antes de encontrar ou se obcecar pela busca de um par romântico, você descobriu outro amor: a amizade.

Agora sua amiga cresceu, testemunha da sua história, e ainda assim não pode nem ser sua dependente no plano de saúde. Não é qualquer banco que permitiria um financiamento habitacional para vocês, e, teoricamente, não é viável uma adoção conjunta.

A escritora Mariana Salomão Carrara, autora de ‘Se Deus Me Chamar Não Vou’ e ‘É Sempre a Hora da Nossa Morte Amém’ (ed. Nós)
A escritora Mariana Salomão Carrara - Divulgação

Suas amizades estão no grupo de WhatsApp e numa ou outra "noite das meninas", enquanto os planos e relógios conjugais avançam com o automatismo, a intimidade e a proteção legal próprios da palavra família. Não é preciso nem que você e cônjuge cogitem aquele velho plano de mudar de cidade: sua amiga já dorme e acorda todos os dias sem você.

Toda noite, no jantar a dois, ali na cozinha mesmo, a criança já dormiu, cônjuge faz uma graça, você ri, e é pouca a risada, duas pessoas não chegam a formar uma plateia. Você repara que há meia hora estão falando dos outros, dos amigos de vocês, é preciso marcar com eles.

Você não tem nada contra a vida conjugal. De vez em quando até vai a casamentos e pensa que os noivos são muito fofos —tomara que o divórcio seja amigável, eles merecem o melhor. Aliás, você gosta tanto disso de estar muito junto que começa a se perguntar por que não exerce essa bonita conjugalidade com outras pessoas, amigos a quem você ama tanto e que se tornaram extasiantes exceções agendadas com antecedência e recepcionadas com gritinhos de saudade.

Enquanto acomoda as sobras do jantar nos potes e calcula a quais entes da família e em que horários se destinará o espólio amolecido desta refeição, você se lembra casualmente de expressões para designar um grande amigo. Do peito, da alma, de fé, parceira, comadre. Amigo de todas as horas.

Sua grande amiga também pode ocupar esse sacrossanto espaço cotidiano. Comece com uma mensagem perguntando o que ela quer para a janta. Ignore o estranhamento, e sugira que traga alguma coisa que esteja perto de passar do ponto na geladeira dela, metade de uma abóbora. A resposta já não será sobre o fato de que vocês não marcaram nada para esta noite, será sobre o legume estragando. Não é abóbora, mas tem mesmo uns brócolis. Cozinhem e jantem normalmente.

Na manhã seguinte, diga que precisa agendar na firma suas férias do ano que vem e quer saber qual o melhor mês para ela viajar. Que seu pai tem uma consulta amanhã e você não consegue levá-lo. Que domingo, na volta da sogra, você e cônjuge podem passar lá para ajudar a encapar os cadernos do filho dela, tomando umas caipirinhas.

Estivemos confinados, muitos em casal, e pareceu que o desgosto era do excesso de tempo fechados juntos. Mas não era isso, era a falta. A falta dos outros. Ficou claro que duas pessoas não se completam. Um cônjuge é muito mais magnífico quando sabe amar nossos amigos, compartilhar rotinas, ecoar uma piada doméstica em outros risos e taças.

Vá com sua amiga na reunião escolar. Monte um canto na sua sala para ela trabalhar às segundas, apareça numa terça com o azeite que você notou que estava acabando, critique o wi-fi e ajude-a a mudar de operadora, discuta com o irmão dela, combinem alguns Natais. Morem sempre no mesmo bairro, na mesma rua, dividam o aluguel. Envelheçam juntas.

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