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Mauro Cardoso Simões

O retorno às aulas presenciais nas universidades é mesmo urgente?

Reorganização cuidadosa representa o compromisso com a vida

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Mauro Cardoso Simões

Doutor em filosofia, é professor de ética e cidadania na Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp

​A pandemia de Covid-19 tem deixado um rastro de mortos mundo afora. No início de 2020, diversas medidas foram tomadas para neutralizar com eficácia a transmissão do vírus, que até então era pouco conhecido. Ações como "lockdown", quarentena, isolamento e fechamento de fronteiras marítimas e terrestres foram utilizadas como anteparos à rapidez dos contágios.

Uma vez que o conhecimento sobre a estrutura do vírus pôde ser alcançado, centros de pesquisas, institutos, universidades e laboratórios foram demandados com um sentido de urgência para a produção de vacinas que pudessem indicar algum freio possível à sua disseminação.

Cadeiras em uma sala de aula da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) - Karime Xavier - 11.ago.2020/Folhapress

Profissionais da área da saúde —medicina, epidemiologia, biologia molecular, dentre tantos outros ramos do conhecimento— dedicaram-se, sem descanso, à produção de um saber que exigia uma aceleração sem precedentes, dado o ritmo frenético do surgimento de novas variantes e o tamanho do impacto social, político, econômico e cultural (para citar alguns).

Na área da educação, os impactos não foram menores e, no caso específico do ensino superior, estratégias educativas foram criadas e aperfeiçoadas em tempo recorde para que a presença (a ideia de "presença" chegou a um novo patamar de compreensão) adquirisse um sentido e que suprisse as angústias, as inquietações e o trauma que era acompanhar, a cada dia, a contagem do número de mortos, que não cessava de aumentar. Em meio a esse profundo trauma (uma ruptura tão inimaginável e que impactou incalculavelmente o mundo e as pessoas) que a pandemia causou, docentes e discentes e pessoal não docente das universidades públicas mantiveram um profundo espírito educativo e solidário, permitindo que lutássemos em comunidade para atravessar este período tão terrível.

Como professor, foi impossível não se alegrar durante esses quase dois anos, mesmo em meio a todo o sofrimento, com a "presença" sempre aclaradora, límpida e mesmo combativa de especialistas todos os dias, incansavelmente, defendendo o trabalho de cientistas de todo o mundo num esforço "sui generis" até então pouco visto.

Parabéns aos cientistas, vocês se mantiveram "presentes". E, quando digo aos cientistas, tenho em mente uma variedade de pessoas dedicadas a campos de conhecimento que não necessariamente dialogam entre si. Lembro, neste momento, do célebre artigo escrito por George Orwell, mais conhecido por suas obras "1984" e "A Revolução dos Bichos". O texto a que me refiro é: "O que é a Ciência?" (In: The Collected Essays, Journalism, and Letters of George Orwell: Volume IV, In Front of Your Nose, 1945-1950, London: Secker & Warburg, pp. 10–13).

Neste artigo, Orwell fala da confusão de significado sobre o termo ciência. Para ele, "a ideia de que ciência significa uma maneira de ver o mundo, e não simplesmente um corpo de conhecimento, encontra, na prática, uma forte resistência". Diz ainda: "no momento, a ciência está em alta, e então ouvimos, com bastante razão, a afirmação de que as massas deveriam ser cientificamente educadas: não ouvimos, como deveríamos, a afirmação contrária de que os próprios cientistas se beneficiariam com um pouco de educação". No mesmo texto Orwell questiona: "(...) é realmente verdade que um ‘cientista’, nesse sentido mais restrito, tem mais probabilidade do que outras pessoas de abordar problemas não científicos de maneira objetiva?".

Ao tratar do retorno presencial devemos ouvir não apenas "a" ciência, como disse o professor Pedro Hallal nesta Folha ("O retorno às aulas presenciais nas universidades públicas é urgente", 23/11), mas "as" ciências. Da mesma forma que os cientistas estiveram presentes e travaram uma batalha incansável —e, por este motivo, merecem todo o reconhecimento—, não nos esqueçamos de que as universidades públicas também estiveram presentes.

E é justamente por ouvirmos "as" ciências que somos prudentes na reorganização cuidadosa do retorno fisicamente presencial. Isto não é um "péssimo exemplo" de "professores e professoras das universidades", nem se está à "beira do ridículo", mas representa o compromisso com a vida do qual não abrimos mão.

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