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Lenio Streck

O Supremo acertou ao equiparar injúria racial ao crime de racismo? NÃO

Mesmo se o Parlamento aprovar, medida continuará sendo inconstitucional

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Lenio Streck

Advogado, jurista e professor

Não devemos confundir argumentos jurídicos com argumentos políticos e morais. O Brasil foi o último país a acabar com a escravidão. Essa vergonha temos de carregar. Porém, isso não implica usar o direito penal como pedra filosofal.

Por isso, a pergunta não deve ser se "sou a favor ou contra a que o crime de injúria racial jamais prescreva", mas sim "se a Constituição permite e se o Supremo pode tornar esse crime imprescritível".

Vejamos. Prescrição de crime é conquista civilizatória; é, antes de tudo, garantia: limita o poder de punir. Na Constituição, a imprescritibilidade é absoluta exceção, tanto que é apenas para um crime: racismo. ​

Manifestantes pintam frase #vidaspretasimportam na avenida Paulista, em São Paulo, em protesto pelo assassinato de Beto Freitas, em Porto Alegre - Bruno Santos - 21.nov.2020/Folhapress

Não deve haver equiparação, por interpretação judicial, entre dois crimes. Além do mais, o direito penal não serve para combater o crime. No máximo, controla o crime. Direito penal não resolve problemas; ele é um problema.

O que o STF fez, ao equiparar a injúria racial ao racismo, tornando-a imprescritível, foi dizer como a corte acha que o direito deve ser. Porém, a sua tarefa é lidar com o direito que é. Assim ocorreu com a presunção da inocência, a duras penas. Há uma velha lei, a do filósofo David Hume, que não deve ser violada: de um "é", não se tira um "deve". Algo como "há racismo ("é"); logo, devemos equipará-lo à injúria ("deve")...

Sei que somos tentados a melhorar o direito e até mesmo a Constituição. Só que, na democracia, juízos morais não devem corrigir o direito. Ou seja, pessoal e politicamente, podemos até querer endurecer penas e quiçá tornar imprescritíveis crimes econômicos. Mas, constitucionalmente, temos de obedecer a limites. Aliás, aqui surge a agravante: se o Parlamento aprovar a "nova imprescritibilidade" (projeto do Senado), continuará sendo inconstitucional.

Assim, se a Constituição não permite, muito menos o STF pode fazer a alteração. Porque isso fragiliza o próprio Supremo. Tenho escrito muito sobre o especial papel do STF para proteger a democracia. Tenho aplaudido —como dizem, sou "amicus", não "inimicus" da corte— quando age para preservar a República. Nos últimos tempos, o Supremo fez diversos salvamentos da democracia. Indubitável. Porém, não pode tudo.

E, despiciendo dizer, não, não acho que exista "liberdade de expressão" para injuriar pessoas. É até uma platitude ter de lembrar isso.

A resposta está na Constituição. Racismo é ontologicamente diferente de injúria racial. E quem diz isso é o legislador que, após a Constituição, definiu o que é crime de racismo (lei 7.716/1989). Inclusive, a alteração promovida por meio da lei 9.459/1997 —que alterou dispositivos legais resultantes de preconceito de raça ou de cor— ao mesmo tempo em que alterou o artigo 20, que tipifica o crime de racismo, também incluiu a questão racial como qualificadora de injúria.

Ou seja, há uma diferenciação: enquanto o racismo se dá dentro de um contexto mais abrangente, a injúria racial é direcionada ao indivíduo injuriado.

Preocupo-me quando se usa o direito penal para buscar resolver problemas sociais. Antes, o STF já equiparara homofobia a racismo, ultrapassando limites tradicionais do direito e da política. Ninguém discorda da frase do voto do ministro Edson Fachin no habeas corpus 154.248/DF: "Há racismo no Brasil. É uma chaga infame que marca a interface entre o ontem e o amanhã". Isso é um "é". Contudo, não qualifica a Suprema Corte para fazer a alteração. Judiciário trata do passado. Legislativo, do futuro. E até o Legislativo tem limites. Nenhum dos dois pode tudo.

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