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O Supremo acertou ao equiparar injúria racial ao crime de racismo? SIM

Reiteração de estereótipos raciais legitima e perpetua violências contra negros

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No último dia 28 de outubro, o Supremo Tribunal Federal considerou por 8 votos a 1 a injúria racial imprescritível, entendendo-a como uma manifestação de racismo. O caso tratava das ofensas "negrinha nojenta, ignorante e atrevida" proferidas a uma mulher negra.

Embora estarrecedoras, expressões como "sua nega macaca, sua nega sem vergonha", "o macaco está indo comer banana" e "preto ladrão" são comuns nos acórdãos que levantamos em nossa pesquisa realizada no Núcleo de Justiça Racial da FGV Direito SP, em parceria com o Afro/Cebrap.

Manifestantes pintam frase #vidaspretasimportam na avenida Paulista, em São Paulo, em protesto pelo assassinato de Beto Freitas, em Porto Alegre - Bruno Santos - 21.nov.2020/Folhapress


Graças à mobilização do movimento negro, a Constituição de 1988 declarou que racismo deve ser considerado crime inafiançável e imprescritível, marcando sua gravidade.

A lei 7.716/89 foi a primeira a descrever práticas racistas e, desde então, foi reformada inúmeras vezes a fim de sanar problemas de aplicação, invariavelmente decorrentes da resistência por parte do Judiciário de reconhecer o conflito racial e sua gravidade. Por exemplo, juízes massivamente interpretaram insultos racistas como injúria simples —um crime contra a honra pessoal, com pena de detenção de 1 a 6 meses e movido por ação privada. Com isso, além das dificuldades de acesso à Justiça, o conflito racial é apagado.

Uma reforma de 1997 criou a injúria racial, com pena de 1 a 3 anos. Isso dificultou que racismo fosse tratado como mera ofensa à honra privada, mas abriu espaço para que juízes decidissem que injúria racial não teria o mesmo tratamento jurídico que racismo. No caso julgado, tal interpretação autorizaria o encerramento da ação pela prescrição, sem que houvesse declaração da ilicitude do episódio —o desfecho mais comum em crimes raciais.

Ao considerar que injúria racial é racismo, a decisão do STF tem o potencial de reverter tais interpretações enraizadas no meio legal. Embora tardio, o voto do relator Edson Fachin —do qual apenas Kassio Nunes dissentiu— deve ser celebrado. É significativo que a mais alta corte do país reconheça e nomeie formas sistemáticas de racismo, bem como a resistência do Judiciário em combatê-las.

A decisão afasta o argumento que sustenta a diferença entre as duas categorias: a desonra a um indivíduo e ao grupo são interdependentes. Para Fachin, "a injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça".

A reiteração dos estereótipos raciais legitima e perpetua violências contra pessoas negras ao associá-las a animais e a padrões inferiores de higiene, ética e sexualidade. O insulto racial cumpre o papel performático de demarcar uma diferenciação subalternizada entre o ofensor e o insultado. Se racismo é a ideologia que justifica a desigualdade, a injúria racial é a forma cotidiana de reiterar e reproduzir tal ideologia.

Soluções advindas do direito penal serão sempre insuficientes e problemáticas, mas as estratégias até hoje usadas para minar a aplicação da lei negam o status de sujeitos de direito a pessoas negras e esvaziam uma das poucas conquistas de seu reconhecimento na nossa ordem jurídica.

Resta saber se a importante sinalização do STF resistirá às sucessivas investidas da base do Judiciário em negar direitos à população negra, frequentemente em desrespeito a precedentes de cortes superiores. A inconsistência do Judiciário na aplicação da lei antirracismo levou o Senado a aprovar projeto que torna lei a mesma solução jurídica adotada pelo STF —a proposta agora segue para a Câmara. A cada dia que se omite em reconhecer a gravidade do racismo, o Judiciário o reproduz.

Marta Machado
Saylon Pereira
Larissa Margarido
Luã Ferreira


Pesquisadores do projeto Segurança da População Negra Brasileira, conduzido no âmbito do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV e do Afro/Cebrap

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