Descrição de chapéu
Izabella Borges e Gabriela Manssur

Resposta à 'masculinidade tóxica' de Kanner

Aos incomodados, sugerimos que ajeitem as calças (ou saias) e se preparem para um novo mundo

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Izabella Borges

Advogada criminalista, é especialista em violência de gênero e cofundadora do projeto Sentinelas

Gabriela Manssur

Promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, é coordenadora da Ouvidoria das Mulheres do Conselho Nacional do Ministério Público, fundadora do Instituto Justiça de Saia e idealizadora do Projeto Justiceiras

Que a conquista de direitos pelas mulheres incomoda, não é novidade. Após milênios marcados pela dominação masculina e estruturação do pensamento social que atribui ao homem a força e a virilidade, enquanto às mulheres o idealizado papel de bela, recatada e do lar, ler o artigo de Gabriel Kanner na Folha ("Masculinidade tóxica", 26/10) não é apenas um desserviço a uma sociedade que está longe de respeitar as mulheres, mas também um sofisticado reforço dos lugares que parte da sociedade brasileira acredita pertencerem a cada gênero.

O autor critica uma capa internacional da revista Vogue que trouxe um homem de vestido sob o argumento de ser mais uma "iniciativa" para "desconstruir o que é ser homem". Lembremos que Harry Styles foi o primeiro homem a estampar a Vogue. Ver um homem com vestes femininas, num espaço feminino, sugere ao "macho viril" a castração: o terror do homem criado sob a fantasia de que é completo porque possui um falo. Não é de hoje que a expressão do masculino sutil é repudiada pelos que não suportam a castração, que Lacan chama de cura do homem, o caminhar para se tornar mais feminino, complexo e menos identificado com a fábula do falo que completa as faltas da humanidade.

Harry Styles será capa da Vogue em dezembro
O cantor Harry Styles na revista Vogue - Twitter/Vogue - Twitter/Vogue

Para aqueles ainda perdidos no inconsciente coletivo patriarcal, agir diferente do arquétipo do macho infalível gera confusão quanto à própria identidade e abre espaço para a reflexão: "quem sou eu agora?".

A dita "confusão" de Kanner, consequência que marcaria as novas gerações pela "desconstrução da masculinidade", é justamente o que devemos comemorar. Que bom, caro autor, que a confusão quanto à identidade masculina construída ao longo de milênios de subjugação feminina versus a subjetividade do homem curado —mais completo pela habilidade de expressar emoções e vulnerabilidades— causa-lhe impacto suficiente para que possa deixar bem claro como ainda se fundamentam falas que transvestem o machismo estrutural de certa "desconstrução que deixa o homem fraco e confuso", estimulando as formas de violência contra as mulheres.

Em projetos criados para discutir a masculinidade saudável, muitos participantes são homens frustrados por não atingir o estereótipo do "homem de verdade": controlador, provedor e poderoso. O alto índice de denúncias que chegam em canais como a Ouvidoria das Mulheres e do Projeto Justiceiras revela que 87% das denunciantes são vítimas de violência psicológica exatamente pela reprodução do pensamento social que materializa falas como as do autor.

A frustração cria vulnerabilidades camufladas por violências contra àquelas que conhecem a intimidade desses homens, resposta social à não tolerada castração da virilidade distorcida, resultado da resistência à emancipação feminina.

Aos incomodados, sugerimos que ajeitem as calças (ou saias) e se preparem para um mundo que, esperemos, tenha novas gerações e líderes que disseminem valores diferentes dos sugeridos por Kanner. Afinal, a construção da cultura da paz e do respeito a todos os gêneros só acontecerá quando os próprios conflitos forem objeto de autoestudo.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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