Se houver folia em 2022, não pretendo me entregar a ela

Máscaras com glitter não barram o contágio, e a chegada da ômicron não é alegoria

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Francesca Angiolillo
Francesca Angiolillo

Foi editora do Folha Mais, editora-adjunta da Ilustrada e da Ilustríssima e repórter especial. Está escrevendo a biografia de Tarsila do Amaral, a ser publicada pela Companhia das Letras

Todo ano eram ao menos duas fantasias para o Carnaval. Minha mãe as imaginava, comprava os materiais e partia para a máquina de costura.

A primeira, de palhacinho, se destinava a ser uma versão adocicada dos bate-bolas das ruas de Niterói que tanto medo me metiam.

O traje dessas figuras típicas da folia no Rio e arredores se compõe de um macacão e de uma máscara de tela dura, pintada com traços de palhaço; na boca, um buraco, para um apito. Além, claro, da bola amarrada a um fio que, batida contra o chão, faz um barulho ensurdecedor.

Foliões vestidos de "bate-bola" no subúrbio do Rio durante o Carnava de 2021 - Ricardo Moraes - 14.fev.2021/Reuters

Eu temia sua face escondida, seu estrépito ameaçador. O esforço de minha mãe, traduzido na roupa de cetim de losangos, não mudou isso. Por outro lado, o entusiasmo que ela tinha pelas preparações alimentou meu amor pelo festejo. Fui odalisca, cigana, melindrosa, grega, rumbeira.

É certo que a foliona em mim ficou um tempo adormecida. No fim dos anos 1980, quando nos mudamos para São Paulo, a cidade ainda era o túmulo do samba. Desisti dos folguedos até vê-los se reacenderem no recente frenesi de blocos de rua.

Hoje, quando em alguma tarefa cotidiana pelo bairro, cruzo alguma esquina que certa vez atravessei dançando, meu coração aperta.

Pelo terceiro ano seguido, não vou inventar minha fantasia. Se houver folia, não pretendo me entregar a ela. O coronavírus não para de trocar de roupa e, invisível como o rosto dos bate-bolas, me assusta. O fim da pandemia depende de regras. E Carnaval é —só pode ser, para isso existe— a festa do desregramento.

A melancolia aperta ao ver meu receio travestindo a voz dos que clamam "não pude ir ao culto, agora fique em casa". Ao ver os que disseram "e daí?" encherem a boca para pregar respeito pelos mortos da Covid. É de se perguntar, como na marchinha de Lamartine Babo, quem foi que inventou o Brasil —este Brasil.

Mas máscaras com glitter não barram o contágio; a chegada da ômicron não é alegoria. Talvez uma fantasia de vírus, com espículas de lantejoulas, exorcize meu medo em 2023.

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