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Luiz Kignel e Aline Torres

Um compromisso verdadeiro para 2022

Não construiremos um futuro promissor sem tolerância zero contra o preconceito

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Luiz Kignel

Presidente da Federação Israelita do Estado de São Paulo

Aline Torres

Secretária Municipal de Cultura da cidade de São Paulo

O final de ano tem suas tradições e ritos próprios. Além da tradicional troca de presentes, há —ou deveria haver— um rito individual por vezes esquecido. É a reflexão do ano que passou. O que fizemos e o que deixamos de fazer no tumultuado ano de 2021, período que nos trouxe dois desafios distintos.

O primeiro, certamente, foi a Covid-19. Aquela que diziam ser algo passageiro e que passados longos 20 meses terminou por levar a vida de mais de 600 mil brasileiros. Conforme dados do Mapa da Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo, entre a população negra, 47,6% das mortes ocorreram por causa da Covid-19, enquanto na população branca foram 28,1%. O mesmo estudo também atestou que o vírus foi mais letal em bairros pobres de São Paulo, e só não causaram estrago maior ante as iniciativas dos Poderes municipal e estadual paulistas, que estancaram a pandemia. Para isso havia tratamento certo: isolamento durante o período crítico, vacinação disponível para toda a população e cuidados como máscaras e álcool em gel.

Mas houve um segundo desafio que carregamos há anos sem enfrentá-lo como se deveria e que, novamente, não passou despercebido no ano de 2021. Um obstáculo que não se resolve com vacina, isolamento ou máscaras. Enquanto decrescem as vítimas fatais da Covid-19, outro vírus segue solto. O racismo e o preconceito nunca estiveram tão livres na rua.

Uma pesquisa deste ano feita pelo Instituto Locomotiva e publicada em agosto de 2021 apurou que 84% dos entrevistados percebem o racismo, mas apenas 4% se consideram preconceituosos. Essa gigantesca diferença de perceber o racismo contraposta ao ser racista precisa ser diminuída para que as pessoas saiam de sua zona de conforto. Nos tempos atuais, em que teorias raciais, supremacistas brancos e a extrema direita vem buscando espaço (e em alguns casos infelizmente conseguindo), apenas "não ser racista" tornou-se insuficiente. Não basta! É necessário tomar posição e sermos "antirracistas", manifestando a nossa repulsa a toda forma de discriminação. Se desejamos realmente estancar o vírus do racismo, precisamos ser atores e não mais espectadores.

Infelizmente a história da humanidade deu provas de que o silêncio é comprometedor e a omissão pode ser entendida, ainda que não se deseje, como conivência. É preciso conhecer as distintas demandas contra toda forma de preconceito e não aceitar que as coisas são como são porque simplesmente é assim. Se é, não deveria ser. E cabe a cada um de nós exercer a cidadania para interromper o ciclo do grave racismo estrutural por vezes escancarado na sociedade brasileira.

Cruzamos cinco séculos —tempo demais— trazendo a vergonha da escravidão de negros retirados à força de suas origens, carregados como mercadoria ao redor do mundo em navios negreiros. Tardiamente, quase no final do século 19, o regime escravocrata foi extirpado do Brasil, deixando diferenças sociais que até hoje não foram devidamente corrigidas. Os historiadores estimam que por volta de 4,8 milhões de africanos aportaram como escravos no país, mais do que em qualquer outro lugar do mundo. Esse número se eleva muito mais se forem considerados os filhos destes cativos que já nasceram sob o jugo vergonhoso da servidão forçada.

Da crueldade desumana da escravatura imposta pela cor da pele aos horrores do Holocausto do século 20, onde 6 milhões de judeus foram dizimados pela sua convicção religiosa, vemos que o ser humano não aprendeu a lição. E ainda assim há os que tentam explicar o inexplicável. Que a escravidão e o nazismo, cada qual no seu tempo e ao seu modo, seriam, afinal, justificáveis.

No entanto, se o ano de 2021 trouxe desafios doloridos, também trouxe esperança! Os mesmos netos desses cativos que viveram sob o tronco e a chibata agora saboreiam, mesmo que em poucas doses, o gosto da representatividade. Crianças que se veem em bonecas e que podem amar e se orgulhar de seus traços e cabelos. Adolescentes que saem do imaginário para o mundo real ingressando em universidades para se tornarem médicos a astronautas, simplesmente por verem na sociedade profissionais como eles. Atrizes e atores interpretando reis e empresários sem o estereótipo do passado, personagens em locais de destaque que antes nunca foram assim caracterizados pelos seus pares.

O verdadeiro compromisso que temos com 2022 é abrir novas portas de oportunidade.

Afinal, o que importa hoje é que os atos racistas e de preconceito que acontecem na sociedade não nos acuam mais; ao contrário, servem de alavanca para seguirmos em frente. Com eles, todos se capacitam, estudam e ocupam os espaços em uma sociedade que deseja ser verdadeiramente plural.

Não construiremos um futuro promissor no Brasil se não conhecermos de maneira correta o nosso passado e assumirmos, individual e coletivamente, o compromisso de tolerância zero para qualquer forma de racismo. O desafio é enorme, mas já tarda ser assumido por todos nós. Como nos ensinou o poeta negro Machado de Assis, orgulho da literatura brasileira, "só as grandes paixões são capazes de grandes ações".

Que venha um 2022 verdadeiramente voltado ao respeito e integração!

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