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Melchíades Cunha Júnior

Verdade e liberdade: irmãs gêmeas e gentis

Sem arrogância, frei Carlos Josaphat nos ensinava a reler os seculares ensinamentos da igreja

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Melchíades Cunha Júnior

Jornalista

Frei Carlos Josaphat era um moralista. Antigamente, este substantivo despertava respeito e, na forma adjetivada, não guardava qualquer sentido pejorativo. Moralista é quem estuda e prega os valores morais. Há quem prefira chamar esses valores de virtudes —uma força que age, ou que pode agir, na definição de André Comte-Sponville em seu "Pequeno Tratado das Grandes Virtudes" (ed. Martins Fontes). Sponville enumera 18 grandes virtudes em seu livro, entre elas a fidelidade, a prudência, a temperança, a coragem, a justiça, a generosidade, a compaixão, a simplicidade, a tolerância, a doçura, a boa-fé, o humor e, evidentemente, o amor.

Frei Josaphat pertencia à Ordem dos Pregadores (dos frades dominicanos). Ele dizia ter apostado tudo em Jesus Cristo e que estava ganhando a aposta nos seus mais de 50 anos de sacerdócio (quando o conheci), exercidos no Brasil, na Europa, na África e nos Estados Unidos. Mineiro de Abaeté —a primeira cidade brasileira pela ordem alfabética, conforme gostava de brincar. Não é mais: caiu para o terceiro lugar.

Frei Carlos Josaphat, aos 82 anos: frade dominicano estimulava que a sociedade debatesse abertamente dogmas da igreja, como genética, métodos contraceptivos, homossexualidade e evolucionismo - Karime Xavier - 24.nov.10/Folhapress

Depois de um longo "exílio" de mais de 30 anos, ele voltou às suas pregações na Igreja do Convento de São Domingos, no bairro das Perdizes, em São Paulo. No início da década de 1960, seus sermões (ou homilias, como se prefere dizer hoje) eram arrebatadores. Seus ouvintes sentiam-se como que diante de um Vieira redivivo. A missa do meio-dia na São Domingos transformou-se em ponto de encontro de centenas de jovens e adultos, que se dispunham a mudar o Brasil para melhor, à luz do Evangelho.

Aquelas pregações dominicais eram embasadas pela fé em Jesus Cristo e vigorava um chamado ao engajamento para mudar o país para melhor, com a justiça social imperando para todos os brasileiros, à luz do Evangelho. Naqueles três anos que antecederam o golpe militar de 1964, muitos de nós sonhávamos acordados com as reformas de base. Havia um sentido de urgência.

Com frei Carlos na liderança, fundou-se então o "Brasil Urgente" —um semanário cujo lema não deixava por menos: "A verdade, custe o que custar; a justiça, doa a quem doer". E a hierarquia acabou despachando frei Carlos para a Suíça, antes mesmo que o golpe fosse dado. A turma se dispersou e o sonho se interrompeu.

Nos mais de 30 anos fora do Brasil, o frade pregador virou doutor em ética e comunicação social, lecionando por mais de duas décadas na Universidade Pública de Friburgo, na Suíça, com o título de professor emérito. Virou também autor de vários livros e foi um dos principais mentores da portentosa pesquisa que rastreou os pronunciamentos dos bispos católicos sobre questões morais nestes últimos cem anos de história da Igreja Católica. Como um dos frutos de seu trabalho, frei Carlos entregou-nos, entre outros, o livro "Moral, Amor & Humor - Igreja, Sexo e Sistema na Roda-Viva da Discussão" (ed. Record-Nova Era).

O livro trata das grandes questões morais do tempo presente, postas para os católicos e também para todos os que apostavam e/ou continuam apostando no bem. E como tratá-las sem cair no autoritarismo ou na permissividade? Frei Carlos, inspirado na moral evangélica e também em autores, como Habermas e Karl Otto Apel, elaborou o que se poderia chamar de "romance dialógico", cuja penca de personagens está em busca de um autor. São moças e moços da Família de Santo Expedito, a Santex, que se encontravam para trocar suas dúvidas e corrigir suas certezas sobre temas que os angustiavam. O apelido da família tinha uma explicação: "O santo mártir Expedito é especialmente invocado nos negócios que demandam pronta solução".

Frei Carlos Josaphat Pinto de Oliveira em 1961 - 9.out.61/Acervo UH/Folhapress

E como reler os seculares ensinamentos da igreja neste campo minado da moral contemporânea, sem traí-los, ou desafiá-los sem a ferramenta da arrogância? Através da ética da discussão, aconselha-nos o autor. "Verdade e liberdade são duas gentis irmãs gêmeas. A inteligência só se abre à sabedoria quando atiçada por uma livre opção de amor. É com a alma toda que se busca a verdade", diz a personagem Sinfrônio. "O bom humor é o pico da verdadeira seriedade. Só uma ética sorridente conquista os corações. E tem chance de melhorar esse mundo", completa Severino, outra das personagens.

A Santex se reunia para arrostar a crise da moral e a crise da igreja. "A Santa Igreja é mulher. Há de se olhar sempre no espelho. E o espelho da igreja é o Evangelho." E, a partir daí, sucedem-se os diálogos, à maneira de Platão, numa tentativa de "buscar aquilo que dá para unir e não para dividir as pessoas de boa vontade".

As discussões percorrem todo o livro, sobre temas que nos incomodam e para os quais não conseguimos conciliar nossa crença com a nossa prática. O que dizer da camisinha, por exemplo, abordada no primeiro capítulo? A igreja é contra. Mas e a Aids? Recorre-se, então, a Descartes, que nos meados do século 17 propunha, para tais casos, a teoria e a prática da "moral provisória". Não seria a camisinha um "mal menor", de que falava Santo Tomás de Aquino? A família da Santex, ao contrário de contestar histericamente o magistério oficial, busca compreendê-lo à luz da história. A história não pode ser analisada com histeria, como o fazem alguns adeptos da Teologia da Libertação, que chegaram até mesmo a exigir a renúncia de João Paulo , sob o anátema do "conservadorismo".

O que se diz na Santex sobre a camisinha? Dois trechos:

"As camisinhas são recomendadas e devem ser recomendadas àqueles e àquelas que vivem na prática da promiscuidade sexual. São homens e mulheres que já deixaram de lado o empenho de ter filhos, nesse tipo de relacionamento. Para eles, aliás, procurar a procriação, dentro dessa forma e desse quadro de vida, seria uma irresponsabilidade criminosa para com os filhos e para com a sociedade."

"Nem se diga que preconizar as camisinhas significa aprovar os abusos sexuais e o clima de hedonismo ou de orgias que tornam necessário o uso desses preservativos (ainda uma vez, não da fecundação, mas do contágio da doença). É preciso estigmatizar vícios e desordens, que comprometem a dignidade do homem e da mulher. Tal é a grande e louvável inspiração da igreja, na sua doutrina de moral sexual. No entanto, é igualmente urgente reconhecer e proclamar: quem não pode ou não quer evitar a multiplicidade de parceiros sexuais e, sobretudo, quem escolhe viver na promiscuidade e na prática indiscriminada da sexualidade cometerá crime muito maior não usando preservativos. Pois assim se multiplicam atentados contra a vida e se espalham germes de morte e de desespero. (...) Quando a morte se alastra em contágio crescente e irresistível, deixar-lhe os caminhos abertos não seria perpetrar ou aceitar um crime contra a humanidade?"

Como conclusão, a Santex prefere unir e articular a ética dos valores com a ética de emergência (a moral provisória de Descartes), por entender que se trata de uma dupla dimensão, conexa e inseparável, de uma mesma ética.

Em seus 12 capítulos, o livro de frei Josaphat aborda outros temas quentes da sexualidade, sob os seguintes títulos: "Contracepção, amor e fecundidade"; "Sexo, repressão e emancipação"; "Homossexualidade, ontem, hoje e amanhã"; "E no entanto, Deus fez a mulher". As personagens da Santex estão firmes com a Santa Madre na condenação do aborto, mas não são radicais em relação a práticas anticoncepcionais: "No caso do aborto, há um ser humano, uma nova vida humana que se suprime. No caso da contracepção, há uma intervenção para impedir o começo mesmo dessa nova vida. No uso que o casal faz da sexualidade, pode haver um modo certo ou errado, virtude ou pecado, mas não há uma terceira pessoa, um novo ser humano que seria alvo de uma 'injustiça'".

Para a turma da Santex, a caminhada ética só pode ser progressiva. " A gente sempre tem uma base na experiência moral e pode assim encetar a reflexão ética e fazer vir as contribuições das ciências humanas."

O homossexualismo, eles discutiram também. Com homossexuais. E tiraram seis proposições, cuja leitura certamente reduzirá o nível de preconceitos e maneirismos com que o tema é tratado por quase todos nós. São proposições extensas para serem aqui repetidas. Mas transcrevo o "Decálogo da Homofilia", condensado da revista francesa Arcadie, e que a Santex utilizou para suas discussões. Vejamos:

1. O primeiro dever do homófilo é de se integrar na vida cotidiana. "Não viver à margem" ou separado do mundo;

2. Ter plena consciência dos seus direitos, que são "os mesmos de todos os outros" seres humanos. Direito à justiça, à proteção das leis, ao respeito e à dignidade;

3. Ter igualmente clara consciência de pertencer a uma grande família espiritual e carnal, injustamente desconhecida e desprezada. "Ser solidário" com os oprimidos e opor-se a toda espécie de opressão;

4. "Respeitar as leis" do direito comum, mesmo quando tenha que "lutar" para modificá-las no sentido da justiça;

5. Nada de "proselitismo" ou de aliciamento, sobretudo de menores;

6. Jamais pretender estar "acima ou abaixo dos outros" em razão de dotes ligados à sexualidade;

7. Evitar toda espécie de "excentricidade";

8. Cultivar sua capacidade de afirmar-se e de amar de maneira "harmoniosa e equilibrada";

9. Ajudar os mais frágeis ou excitados a superar toda "anarquia sexual";

10. Aceitar e praticar os "valores éticos comuns" a toda a humanidade.

"Moral, Amor & Humor" também se debruça sobre outros temas relevantes do tempo presente, a saber: sentido, valores e códigos éticos; regras do jogo ético diante do pluralismo cultural; bioética. Mais o sentido e o gosto de viver; ética e economia, pairando nas nuvens; política, ética e a impossível democracia; ética e mídia. Encontro ou desencontro.

O tom que perpassa os diálogos, longe de se assemelhar aos gritos que frequentam a boca dos radicais, é de compreensão e acolhimento à divergência. "Gostaria de abordar tudo isso com muita calma, que é uma das mais lindas formas da cortesia da inteligência", diz uma das personagens a certa altura do livro.

Realmente, a calma é uma das formas mais lindas de se ser cortês com a inteligência alheia.

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