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Emerson Kimura

A imprensa e a origem do coronavírus

Mídia errou ao promover falso consenso científico contra possível escape laboratorial

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Emerson Kimura

Jornalista

O novo coronavírus, causador da Covid-19, veio de um animal ou de um laboratório? Esse foi um dos debates científicos mais acalorados de 2021. Pesquisadores ainda procuram uma resposta para essa questão, mas, durante um bom tempo, a imprensa tratou-a como encerrada, promovendo um consenso que não existia.

Até meados do ano, muitos jornais levavam a sério apenas uma explicação para a origem do vírus: ele foi transmitido por um animal. Outras hipóteses eram chamadas de teorias da conspiração ou "história fantasiosa", como escreveu a agência de checagem Lupa.

Desde então, o discurso mudou. Esta Folha, por exemplo, cobriu o assunto com sobriedade em reportagens, colunas e editorial. O Fantástico, da TV Globo, ouviu vários pesquisadores que não descartam a hipótese do escape laboratorial.

Por que a imprensa errou tanto antes?

Para começar, faltou ceticismo. Muitas reportagens citaram um estudo na revista Nature Medicine que dizia mostrar "claramente que o Sars-CoV-2 não é uma construção de laboratório ou um vírus propositalmente manipulado".

Veículos limitaram-se a propagandear o artigo, e alguns foram até mais longe. "Estudo desmente teoria conspiratória", definiu O Estado de S. Paulo. "Os boatos de que o vírus foi manipulado pela China não passam de uma mentira. E a ciência prova", publicou a revista Superinteressante.

Uma leitura atenta evitaria essas conclusões equivocadas —o próprio estudo diz ser "impossível provar ou refutar outras teorias" sobre a origem do vírus.

Outro problema foi a ânsia de mostrar que Donald Trump e seus seguidores estavam errados, como na reportagem "China prende jornalista australiana sem divulgar acusação formal" (1º.set.20): "O presidente […] se referiu ao patógeno […] como ‘vírus chinês’ e o governo americano ajudou a divulgar uma teoria conspiratória —já desmentida por estudos científicos independentes— segundo a qual o coronavírus teria ‘escapado’ de um laboratório […]."

Há diversas hipóteses sobre a origem laboratorial, e algumas de fato soam conspiratórias —por exemplo, a ideia de que o vírus seria uma arma biológica. Outras, como um vazamento acidental, são mais razoáveis —talvez menos prováveis que as hipóteses de origem animal, mas longe de serem impossíveis. Toda essa nuance se perdeu na mídia, contaminada pelas declarações de Trump.

Até por isso, nos EUA a coisa foi bem pior. Veículos jornalísticos reescreveram textos que tinham erros, redes sociais censuraram publicações de usuários e uma agência anulou um artigo de checagem de fatos.

Nesse ambiente, cientistas que não descartavam a hipótese da origem laboratorial sentiram-se pressionados a evitar o assunto. Ainda hoje, muitos preferem ficar quietos quando discordam da posição adotada pela imprensa.

Isso complica o trabalho dos jornais, que muitas vezes se guiam por manifestações públicas para descobrir o "consenso" entre especialistas. O resultado pode ser desastroso: o anúncio de um falso consenso, que existe apenas entre personalidades conhecidas por jornalistas. É o que parece ter ocorrido.

Para evitar essa armadilha, deve-se fazer mais do básico: apurar bem. Isso inclui buscar também especialistas fora das redes sociais. O Twitter não representa a diversidade da comunidade científica.

A imprensa passou a aceitar a hipótese do escape laboratorial só depois da saída de Trump da presidência dos EUA, da publicação de textos de autores e cientistas de renome e de uma declaração do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde. Não precisaria ter esperado tudo isso se tivesse trabalhado com esmero desde o começo.

É difícil encontrar o equilíbrio. Não se trata de cobrar tratamento igual a diferentes hipóteses, mas tratamento mais preciso, que represente bem o que a ciência tem a dizer. Não raro, isso inclui diferentes hipóteses com diferentes probabilidades —e, nesses casos, a imprensa deve mostrar que a hipótese mais provável não é a única possível ou correta, e que as menos prováveis não são necessariamente impossíveis ou falsas. Em suma, o jornalismo precisa aprender a lidar com a incerteza.

Além de desinformar, coberturas desastradas como a aqui discutida aumentam a desconfiança do público e fazem a festa dos reais propagadores de teorias conspiratórias: "Quem garante que, agora, o que a imprensa chama de mentira é mesmo mentira?".

Um trabalho cuidadoso beneficiaria a todos. A imprensa não continuaria a perder tanta credibilidade. A comunidade científica teria um ambiente mais saudável para debates. E a sociedade seria mais bem servida pelo jornalismo e pela ciência.

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