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Luiz Guilherme Piva

Cânones e pastiches, criadores e criaturas

O metaverso é criado por nós, mas também nos cria

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Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

Artigo de Ronaldo Lemos nesta Folha ("Como as redes digitais demolem a cultura e ampliam a ansiedade", 17/10) tem dois pontos centrais: o desmanche do cânone do conhecimento no pastiche das redes sociais e o domínio destas sobre os usuários, dada sua capacidade de desvendar-lhes gostos conscientes e inconscientes e de lhes oferecer sentimentos e produtos adequados aos seus perfis.

O primeiro nos remete à Escola de Frankfurt e seus conceitos de indústria cultural e cultura de massa. O segundo também, mas abriga uma outra reflexão, acerca das relações entre criador e criatura.

Para aquela escola, a reprodutibilidade da arte (filmes, fotografias, discos, rádio) marca o fim da arte autêntica e a transforma em simulacro para consumo. O autor também decreta o fim do cânone atual: tudo é "uma massa amorfa", a atividade criativa é "atividade de massa". "A cultura popular se transformou em pastiche"; o "cânone cultural" se remixa em reprodução inautêntica.

Atenção agora. Lemos tem por cânone que está sendo destruído pelo TikTok o que a Escola de Frankfurt chamava de pastiche da arte autêntica: livros, filmes, músicas, quadros. Ou seja, o cânone de Lemos é o TikTok da Escola de Frankfurt —e é o que tornou para ela, por contraste, a "arte autêntica" em cânone. Ao mesmo tempo, é o pastiche das redes que "autentica" o cânone de Lemos —e que era pastiche para os frankfurtianos.

E no futuro? O TikTok será o novo cânone a ser simultaneamente criado e cancelado por novo pastiche?

Entramos no segundo ponto.

A cultura de massa, para a Escola de Frankfurt, é um recurso capitalista para gerar lucros e controlar a população, impondo-lhe produtos e posicionamentos. Lemos igualmente mostra a capacidade dos algoritmos de captarem as preferências do usuário e de transformá-las em consumo, produzindo lucros e reproduzindo ideologias. O extremo disso é o metaverso, em que avatares exercem tais preferências em realidade virtual.

Eis o ponto do criador e da criatura. O metaverso é criado por nós. Mas também nos cria. Afinal, passamos a agir, pensar e consumir nos termos ditados pelos algoritmos. Criamos a realidade virtual ou os avatares nos criam à sua imagem e semelhança e, ao fazê-lo, nos destroem?

Borges, em "Kafka e seus precursores", afirma que a grande obra inventa discípulos e precursores, reposicionando criador e criatura. Curiosamente, ele se enovela nesse processo com o escritor, anterior a ele, Macedonio Fernández, a quem cita e parafraseia tanto que Macedonio brinca e diz que ele é quem cita e usurpa a obra de Borges.

Mais curioso —e nos reconectamos ao primeiro ponto: Macedonio dizia que toda a herança intelectual findara e que tudo teria de ser recomeçado. E Borges o faz, como pastiche, com a obra de Macedonio.

Ambos exercitam até o limite a "ideia de que na literatura já não há ideias originais e sim citações" (Rascunho, 2011). O fato é que um autor-cânone para Borges —e que o forma, em parte— se desfaz em suas mãos, mas é também fundado por ele. Quem é cânone, quem é pastiche? Quem é criador, quem é criatura?

Borges diz que Kafka funda como seu antecessor o poeta Robert Browning, que, ao ler seu próprio poema, "não o lia como agora o lemos" —não o Ronaldo (eis um trocadilho nonsense para o TikTok), que o leria talvez como cânone remixado por Kafka.

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