Descrição de chapéu
Sergio Tuthill Stanicia

Constituição nunca disse que casamento é entre homem e mulher

Só com piruetas interpretativas para defender tese de deputado governista

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sergio Tuthill Stanicia

Doutor em direito pela USP

Foi publicado no Painel, desta Folha, que "[André] Mendonça deu resposta treinada e não defenderá casamento gay no STF, diz líder evangélico" (1º/12). Embora tenha dito que defenderia "o direito constitucional do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo", segundo o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), "o que a Constituição garante é [o casamento] de homem e mulher".

Diante disso, é necessário ressaltar com veemência que esse fala é inverídica. A Constituição não diz, nem nunca disse, que o casamento é entre "homem e mulher". Trata-se de mito propagado há muito tempo, por desconhecimento de alguns e má-fé de outros. A Constituição não define casamento. Diz apenas que é civil e gratuita sua celebração, que o casamento religioso tem efeitos civis e que o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

O único trecho em que há menção a "homem e mulher" está no §3º do artigo 226, que dispõe: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". Portanto, a menção a homem e mulher diz respeito à união estável, não ao casamento.

E mais, dizer que seja reconhecida a união entre homem e mulher não quer dizer que se proíba o reconhecimento de outras uniões, como destacou o voto do ministro Ricardo Lewandowski, irretocável do ponto de vista técnico, no julgamento em que o Supremo reconheceu, por unanimidade, a união homoafetiva.

Nem é preciso recorrer aos princípios, ou à vedação constitucional de todas as formas de discriminação. O sentido mais óbvio, do ponto de vista literal e lógico, é o da admissão tanto da união estável quanto do casamento homoafetivo. Para se defender que a Constituição não os permite, seria necessário dar pelo menos duas piruetas interpretativas.

Primeiro, seria preciso dizer que o rol de entidades familiares é fechado, ou seja, são apenas aquelas que a Constituição menciona explicitamente: casamento, união estável heterossexual e comunidade formada por um dos pais e os filhos. E é claro que aqueles que se opõem à união homoafetiva não defendem isso, pois seria preciso levar o argumento até o fim e dizer que não configuram entidades familiares nem mesmo aquelas situações classicamente presentes em manuais de direito de família, como a situação em que duas irmãs ou dois irmãos solteiros habitem juntos.

A segunda pirueta interpretativa é dizer que, como a Constituição facilita a conversão da união heterossexual em casamento, então o casamento, por definição, seria entre homem e mulher. Essa leitura não faz sentido lógico. Seria como definir a água da minha casa pelo gelo derretido do meu freezer desligado e dizer que a substância que retiro do purificador não é água, pois não é gelo derretido.

Em suma, e para deixar claro: 1 - a Constituição não define o casamento como união entre homem e mulher; e 2 - a Constituição reconhece explicitamente a união estável heterossexual, o que fazia sentido em 1988, mas isso não significa que proíba o reconhecimento de outras uniões.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.