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Filipe Campello

Livres para morrer e matar

Vocabulário para se referir à liberdade está obsoleto

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Filipe Campello

Doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt, é professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco e professor visitante na Università di Perugia

A fala recente do ministro da Saúde, priorizando a liberdade diante da vida, nos faz lembrar aquelas cenas conhecidas em que um bando de zumbis anda por aí livremente. Menos mal que no Brasil a militância antivacina tem pouca adesão popular, mas não é o que temos visto em outros lugares.

Por acaso estava em Viena, na Áustria, no fim de semana em que as ruas foram tomadas por protestos de grupos antivacina. Via-se um caldeirão de discursos que prometem falar em nome da liberdade, mas friamente insensíveis à devastação causada pela pandemia de Covid-19. O que explica esse fenômeno?

Isso que pode parecer paradoxal talvez seja, na verdade, efeito colateral do que se está sendo chamado de liberdade. A liberdade de não ser coagido é o que foi chamado de liberdade "negativa" —por exemplo, o direito de ir e vir sem ser forçado nem impedido. Acontece que essa mesma noção, se radicalizada, passa a tomar qualquer limite como algo a ser confrontado. É o que Hegel chamou de "fúria da destruição": a liberdade do fanático, que acaba por tomar as próprias instituições sociais (ciência, Estado, mídia etc.) como restrições a sua liberdade. No caso da pandemia, ela facilmente assume um cálculo onde a liberdade de não ser vacinado está acima do risco de contaminar outras pessoas. Lutam pela liberdade de morrer e levar junto quem encontram pela frente.

Manifestantes antivacina se reúnem em ato em praça de Viena; um deles carrega cartaz com a frase 'não à vacinação compulsória' - Gerog Hochmuth - 14.nov.21/AFP

Mas o que mais me impressiona é que esse tipo de discurso não se restringe a setores da direita clássica. Outros dois grupos têm se destacado nessa cruzada antivax. O primeiro é a que curiosamente une uma "direita gratiluz" (como chamou minha colega Fabiana Moraes) com a "esquerda namastê". Ali, nos protestos, lia-se: "seu corpo é sagrado" ou "seu corpo é um templo" (e porque é um templo não pode tomar vacina?) —tudo regado a incensos e danças cósmicas.

A pandemia tem mostrado que até mesmo uma lógica do corpo como propriedade individual pode falhar na medida em que o próprio corpo é vetor de contaminação. Ser livre para sair por aí sem estar vacinado significa pôr em risco as pessoas que passam ao meu lado, espalhando "gratiluz", mas também o coronavírus.

Talvez ainda mais surpreendente seja o segundo grupo. Na Itália, onde estou agora como professor visitante, ouvi em várias ocasiões as mesmas resistências à vacina ou a medidas de isolamento em setores que se dizem de esquerda. Chegam a conseguir comparar, com louvável imaginação retórica, as reflexões do cárcere de Gramsci com os lockdowns contemporâneos. Como Giorgio Agamben, que num artigo sob o título "A invenção da pandemia" questionava as "medidas de emergência frenéticas, irracionais e completamente injustificadas para uma suposta epidemia, devido ao coronavírus".

Tudo isso mostra que o vocabulário que continuamos a usar para nos referir à liberdade tem se tornado obsoleto, e é curioso que em meio ao cenário pandêmico se transformou em obsessão. Será um bom capítulo na história das ideias conseguir explicar como o sentido social de liberdade virou essa moda de uma defesa paranoica da liberdade individual que liga a ultradireita a ditos foucaltianos e gramiscianos.

Ao contrário dessa artimanha narrativa, a lição que vem da pandemia tem sido outra: a de que o sentido de liberdade no mundo pós-pandêmico requer esforços de cooperação social. Mais do que isso: para continuar nos perguntando como queremos exercer nossa liberdade, antes teremos de lidar com questões urgentes ligadas à nossa sobrevivência, desde o surgimento de novas pandemias até questões climáticas.

E aqui vem a outra lição: as propostas de cooperação social cada vez menos se deixam reduzir às fronteiras nacionais.

É por isso que uma das questões mais desafiadores no cenário pós-pandêmico será a de repensar o sentido de liberdade em um contexto marcado pelo uso de big data e o debate em torno da privacidade —e que dificilmente continuará a se resumir ao vocabulário que temos baseado em noções como indivíduo e nação. Isso certamente vai exigir mais de nossa imaginação política. Teremos que ter respostas mais complexas do que as que oferecem os protestos antivacina quando resolvem dar ao seu site o nome de "1984".

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