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Gutierres Fernandes Siqueira

Um Brasil evangélico será cada vez mais secular

É desnecessário temer tal crescimento: não somos o lobo mau da democracia

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Gutierres Fernandes Siqueira

Jornalista e teólogo, é autor de “Quem Tem Medo dos Evangélicos?” (ed. Mundo Cristão) e coautor de “Autoridade Bíblica e Experiência no Espírito” (Thomas Nelson Brasil)

Não é incomum manifestações da elite cultural (artistas, jornalistas, intelectuais, acadêmicos etc.) ressaltando que o Brasil caminha para uma teocracia. A referência cultural frequente é a distopia "O Conto da Aia", de Margaret Atwood, que apresenta a República de Gilead —lugar onde as pessoas, especialmente as mulheres, sofrem as consequências dos ditames ditatoriais de um governo cristão. Todavia, realmente estamos sob uma ameaça teocrática? Ou essa preocupação é mais fruto de uma histeria preconceituosa?

O crescimento evangélico é um fenômeno social surpreendente. Segundo pesquisa Datafolha de 13 de janeiro de 2020, 31% da população brasileira é evangélica. No censo do ano 2000, era 15,4%. Pelo ritmo atual, na década de 2030 teremos uma maioria evangélica na nação que ainda é conhecida como a "mais católica do mundo". É natural que a participação política dos evangélicos cresça na mesma proporção. É normal, também, que mais evangélicos alcancem posições de poder.

Entretanto, diferentemente do senso comum da elite cultural, um Brasil evangélico será um país paradoxalmente mais secular. A pluralidade é uma marca da tradição protestante. O evangelicalismo —versão mais popular e conservadora do protestantismo— é extremamente pulverizado. Há, literalmente, uma igreja evangélica para cada gosto musical, litúrgico, estético, doutrinário e até ético-moral. A teocracia, como todo totalitarismo, demanda um tipo de coesão que não existe no universo evangélico brasileiro. É mais fácil unir um bolsonarista e um petista numa causa política qualquer do que duas igrejas evangélicas de denominações distintas em um projeto de evangelização. Na multidão das vozes distintas e concorrentes do evangelicalismo está a semente do secularismo.

Por outro lado, a falta de um monopólio (afinal, os evangélicos não têm papa, apenas candidatos ao pontificado) favorece o evangelicalismo. Assim como no livre mercado, quanto mais concorrência em um ramo, mais criatividade, inovação e crescimento esse ramo terá. O secularismo evangélico não dessacraliza o mundo, porém torna-o mais múltiplo. Os evangélicos há muito tempo deixaram a condição de seita (grupo fechado, coeso e pequeno) para a condição de igreja (grupo aberto, desagregado e grande).

O Brasil evangélico é uma boa notícia para a jovem democracia brasileira. Diferentemente de Polônia, Hungria e Turquia, democracias jovens e frágeis sob ameaça teocrática, o Brasil tem a sorte (ou seria a graça divina?) de contar com uma religiosidade difusa, competitiva e criativa.

O Brasil evangélico continuará profundamente religioso e, ao mesmo tempo, em processo de constante modernização. Não é necessário temer o crescimento evangélico. Não somos o lobo mau da democracia.

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