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Lusmarina Campos Garcia

Um Natal para edificar o futuro

Que a data nos leve a desistir do ódio, investir no amor e reconstruir esperanças

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Lusmarina Campos Garcia

Pastora luterana, teóloga e doutoranda em direito pela UFRJ

O Natal é tempo de recompor esperanças, inventar novos horizontes e pensar que há possibilidades para além daquelas que, no momento presente, conseguimos perceber. É a oportunidade que nos damos de ver em nós e nas outras pessoas o que há de melhor.

Mas é também um chamado para reconhecer na história de um casal jovem e sem teto a crueza de trazer ao mundo uma criança em completa exclusão social. A história de Maria, José e Jesus, romantizada pela narrativa comercial e religiosa, é a história de milhões de pessoas migrantes, refugiadas, sem teto, sem terra, sem lugar; pessoas que no Brasil hodierno estariam escarafunchando carcaças de ossos para se alimentar ou esperando na fila da vacina contra a Covid-19 sem saber se o seu filho teria alguma chance de recebê-la ou não.

Quando estive na cidade de Belém, na Palestina, visitei o suposto local do nascimento de Jesus e vi a simplicidade da estrebaria transformada na opulência de uma basílica. É assim que tantas vezes ressignificamos a história: transformando os espaços e os eventos ocorridos no seu oposto. Essa inversão de sentidos carrega em si um paradoxo: por um lado é o encobrimento da realidade que, de tão cruel, dela nos envergonhamos e fazemos de conta que não existe (ou não existiu); por outro, é a chance que temos de deixar marcas contra o tempo. No entanto, numa situação de desigualdade social, como foi a de Jesus e como é a do Brasil contemporâneo, a opulência de uma basílica não é justificável.

Precisamos de menos catedrais, palácios e mansões e mais casas populares que possam abrigar os milhares de crianças que, como Jesus, não têm lugar adequado para nascer e para viver. Precisamos de menos ganhos extravagantes da indústria da carne na Bolsa de Valores e mais grãos, ecologicamente sustentáveis, nos pratos das famílias brasileiras.

Turista visita a basílica da Natividade, em Belém, na Cisjordânia - Musa Al-Shaerf - 20.dez.11/AFP

Precisamos de menos interferência da Faria Lima e da avenida Paulista na política nacional e mais consulta popular acerca dos programas de governo que queremos eleger e que garantam um futuro sem autoritarismo e desigualdade. Precisamos de mais mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+ nas instituições para enfrentarmos a violência e a intolerância crescente no país e assentarmos a sociedade brasileira sobre as bases daquilo que ela é: complexa e diversa.

Precisamos repactuar o Brasil não por cima, conforme historicamente tem sido feito em períodos de crise, mas com ampla participação dos movimentos populares e da sociedade civil organizada. Precisamos que a elite brasileira abdique da luxúria e da soberba e entenda que uma sociedade mais igualitária é a sua melhor proteção. Precisamos que os pobres saibam que os recursos existentes neste país são seus e lhe são devidos, e tanto a pobreza como a riqueza são distorções da injusta disparidade social e do racismo ainda não superado.

Precisamos retomar a solidariedade como critério para as relações interpessoais e políticas. Precisamos, enfim, aprofundar a capacidade de pensar. O teólogo Rubem Alves dizia que "pensar é voar sobre o que não se sabe".

Que o Natal de 2021 nos impulsione para esse tipo de voo e para arriscar caminhos desconhecidos, inventar horizontes não delineados, reconstruir esperanças às quais havíamos renunciado, desistir do ódio e investir no amor e, assim, desenhar um futuro que nos atravesse com a força da justiça e da paz. Feliz Natal!

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