Descrição de chapéu

As chuvas na Bahia e no morro da minha infância

Diferentemente do que pensava ontem, hoje quero que o barro na sola dos meus pés permaneça

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Stefano Volp

Roteirista, tradutor, escritor e jornalista, é fundador da editora Escureceu e autor, entre outros, de "Homens Pretos (Não) Choram"

O som da chuva, seu cheiro sobre a terra e o verde da relva após um aguaceiro podem até ter sua poesia, mas a vida das famílias pobres se parece mais com a prosa onde um torrencial costuma deixar traumas irreparáveis.

Os recentes vídeos das tragédias na Bahia me transportaram para a minha infância, num morro sem asfalto, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Há 20 anos, segundo o IBGE, quase metade das casas no Brasil ainda não estavam em rua pavimentada. Já parou para pensar o quanto isso influencia a relação do pobre com a chuva desde criança?

Ora, se chovesse, eu não podia brincar no quintal escorregadiço. Restava passear entre as goteiras, trancafiado em uma pequena casa no pico do morro. Se ventasse, não demoraria muito até a luz acabar e então a única brincadeira possível seria mexer os dedos em frente às velas acesas, projetando divertidas sombras nas paredes mal pintadas.

Apesar disso tudo, meu trauma mesmo era sublinhado no dia posterior, quando a chuva já tinha parado e as mães mandavam seus filhos para a escola. Por um lado, morar na ladeira era bom porque o risco de alagamento era nulo. Por outro, a chuva que escorregava pelos caminhos sem asfalto sulcava a terra, transformando tudo em um lamaçal.

Quando eu chegava ao asfalto, além das canelas sempre respingadas de lama, ganhava três centímetros de altura. O barro grudava na sola dos nossos tênis feito bolos de lama, e andar chegava a ser pesado. Na sala de aula, depois que o tempo passava, o cômodo esquentava, os resquícios de barro secavam e desgrudavam da sola do tênis com um sorriso debochado, deixando debaixo da minha carteira os rastros do lugar de onde eu tinha vindo. Parecia uma denúncia. Até diziam que eu morava mal, mas, na maioria das vezes, os blocos ressequidos falavam, por si só, mais alto do que a chacota dos colegas. O barro seco sussurrava coisas terríveis que ninguém além de mim podia ouvir.

Com o passar do tempo, aprimorei a técnica para evitar a vergonha. Descia o morro com os tênis cobertos em sacolas de mercado e, no asfalto, removia os resquícios de terra com uma faca. Das coisas que a vida nas comunidades nos ensina, uma das mais importantes é saber como fazer uma boa limonada quando a vida te dá um limão podre.

Hoje, quando vejo as inundações na Bahia, penso nas pessoas que são forçadas a calcular seus passos para sobreviver. A educação pode até nos livrar das botas de sacola, mas, ainda assim, no mundo branco, injusto e traiçoeiro, ainda me pego olhando para a quantidade de barro trazida em meus pés.

Diferentemente de ontem, prefiro que ele permaneça.

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