Descrição de chapéu
José Manuel Diogo

Brasil ama a herança portuguesa

Se tivesse aplicado método científico, autor saberia que lusofobia nunca existiu

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

José Manuel Diogo

Empresário e especialista em Intelligence, é fundador da Associação Portugal-Brasil 200 anos

Não há nada pior que a meio de uma viagem difícil descobrir que o caminho escolhido é o errado; que a premissa era falsa e a tese, afinal, não era demonstrável. Mas, mesmo sendo difícil, impõe a honestidade intelectual que se volte atrás.

Terá de ser essa a única explicação possível para as conclusões surpreendentes (e erradas) do livro "Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento", que Carlos Fino, antigo jornalista e ex-adido de imprensa de Portugal no Brasil, recentemente publicou.

Consulado-Geral do Brasil em Lisboa - Líbia Florentino - 9.ago.21/Folhapress

É verdade que muitas vezes podemos ser tentados a confundir uma percepção (vontade) com uma realidade que simplesmente não existe, mas, se essa leviandade até pode ser desculpada num estudante de liceu, ela é incompreensível numa tese de doutorado aprovada numa prestigiada universidade portuguesa e depois publicada em livro, na mira do sensacionalismo fácil no ano do bicentenário da Independência.

O único estranhamento compreensível do imenso documento é o fato de o autor não ter "estranhado" que, em seu método (científico) —observação, experimentação, hipótese, verificação e tese—, a amostra selecionada não era válida.

Quando escreve "não houve um português com quem eu tivesse falado para esta tese que não tenha contado que se sentiu constrangido ou humilhado de alguma forma com as anedotas —essa persistência do português como sujo, como burro", o autor teria a obrigação de perceber que se encontrava perante uma observação fraca ou uma convicção errada.

O jornalista Carlos Fino, autor de "Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento" - Reprodução/Carlos Fino no Facebook

Se, em vez de persistir nelas, tivesse agido na vigência do método, talvez pudesse ter acedido a um estudo, esse verdadeiramente científico, realizado pelo Datafolha em 2018 (com 2.091 entrevistas realizadas em 129 municípios de todo o país, com margem de erro de 2%) e que evidenciava exatamente o contrário.

Confirmaria que a maioria dos cidadãos do Brasil tem uma visão positiva sobre Portugal; que 43% dos brasileiros gostariam de mudar de país e que, entre estes, 8% apontam espontaneamente Portugal como destino preferido, atrás apenas dos Estados Unidos (14%).

Saberia que, para aqueles que declaravam querer morar em Portugal, a beleza do país, a qualidade de vida, a segurança e a forma como eram recebidos foram os pontos mais destacados; perceberia que a ligação colonial entre Brasil e Portugal estava praticamente ausente, apenas referida por 4%.

Se o texto tivesse a preocupação da verdade e não perseguisse uma percepção, teria rejeitado as experiências pessoais —enganadoras desde o mito da caverna— e nunca teria concluído que "os brasileiros têm vergonha do seu passado português" ou, ainda pior, que "os portugueses menosprezam o Brasil".

Escreveria, ao invés, que a língua portuguesa, a religião católica e seu extenso calendário, as festas juninas, seus corsos e procissões, incluindo o Carnaval; as instituições administrativas, o tipo de construções dos povoados, vilas e cidades; e a agricultura e a gastronomia fazem parte da herança portuguesa e estão presentes indelével e cotidianamente na vida do povo brasileiro —e que nem é preciso falar disso.

Escreveria também que hoje, em muitas universidades portuguesas, as comunidades de estudantes brasileiros são as maiores e que a mais internacional universidade de língua portuguesa em todo o mundo, a Universidade de Coimbra, requer apenas o Enem como habilitação para ingresso nos seus cursos.

Saberia que, entre os cerca de 300 mil brasileiros que hoje vivem em Portugal, há homens e mulheres de negócios, empreendedores em tecnologia, investidores imobiliários e muitos aposentados que, por um motivo ou outro, acreditam que Portugal é o lugar certo.

Saberia que a companhia aérea portuguesa, TAP, junto com Latam e Azul, garantem uma verdadeira ponte aérea entre Lisboa (e o Porto) e 14 cidades brasileiras.

E bastaria atenção jornalística para perceber que, em 2018, a ligação entre os dois países ganhava novo fôlego com a nova "lei da nacionalidade" lusa, que passaria a conferir, sem exceção, o estatuto de português originário a todos os netos de portugueses.

Mas a nota mais triste (e perigosa) deste episódio é mesmo a publicidade acrítica dada ao manuscrito. Porque o "antilusitanismo profundamente enraizado e inconsciente" e a "existência de uma lusofobia no Brasil alimentada por uma visão negativa de Portugal" só existem mesmo no infortúnio destas páginas.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.