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Leonardo Goldberg

Crônica de um governo acabado

Sempre aparecem sujeitos desprovidos de senso para gerir grandes nações, mas há um fim

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Leonardo Goldberg

Psicanalista e doutor em psicologia (USP), é autor de ‘Das Tumbas às Redes Sociais - um estudo sobre a morte e o luto na contemporaneidade’ (Benjamin Editorial) e 'O Sujeito na Era Digital: ensaios sobre psicanálise, pandemia e história' (Almedina, 2021)

Dois séculos antes de Cristo, Políbio já presumia que a história se repetia de forma cíclica. A hipótese do historiador, conhecido por suas sofisticadas tentativas de extrair o código simbólico que resumiria o sistema de repetição da história, era de que a democracia seria, invariavelmente, substituída por um modelo de desconfiança da multidão em suas instituições.

Essa desconfiança nas instituições seria, então, amplificada por dispositivos que espalhariam certo "pânico moral", e, portanto, ancorada na ideia de que transformações dos costumes ameaçariam o bem-estar social de "antigamente". A esse processo, Políbio chamaria de oclocracia, uma espécie de versão negativa derivada da democracia, que figuraria, ao lado da oligarquia e da tirania, como uma das formas más de governo.

A oclocracia pode ser definida, então, como a ascensão do que uma democracia tem de pior a partir de um conjunto de variáveis: ressentimento, medo, ódio, paranoia, excesso de atribuição de sentido e ineficiência absoluta na gestão da coisa pública. Soma-se a isso a tentativa de desestabilização das instituições enquanto constante e não exceção: o problema, para a multidão ensandecida, seriam os jornais, canais de televisão, redes sociais, universidades, o Judiciário e o Legislativo. O governo dos piores é costumeiramente um governo de desconfiados.

Que o conceito de repetição seja um demarcador das nossas histórias, pessoais e coletivas, é algo mais ou menos intuído por todos nós, estudiosos ou leigos. Uns a chamam de padrão; outros, de ciclo. Uns consideram que ela seja a prova de existência da Providência, dos astros ou do destino; outros, que ela opera como um programa automático de forma contínua e estrutural do tecido social. O fato é que ela demarca o que uma população pode considerar possível ou impossível, aceitável ou inadmissível para um governo.

É bem improvável que qualquer analista político tivesse previsto a aceitabilidade social de um líder que, diante da irrupção pandêmica e dos alertas sanitários, tivesse respondido que o vírus era superdimensionado, uma "histeria" e que o Brasil estava se portando como um "país de maricas". Se alguém contasse que um líder, com "a faca e o queijo na mão", quer dizer, com um Sistema Único de Saúde capaz de uma rápida distribuição de vacinas, dissesse que quem as tomasse poderia virar um jacaré, poucos acreditariam. O mínimo garantiria as próximas eleições. Mas a questão talvez não passe por aí.

O Rei Faruk, do Egito, possuía a maior coleção de pornografia do mundo e era conhecido por ter roubado o relógio de Churchill. O Imperador Zhengde, da China, construiu uma cidade falsa na qual fingia ser um simples lojista. Cristiano, Gian, Carlos, George, Ivan, Nadir, Mustafá, Vlad, Frederico: a variável é o nome. A constância é a aparição de sujeitos completamente desprovidos do senso necessário para gerir grandes nações. O fatalismo é que isso não costuma acabar bem. Mas isso acaba.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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