Descrição de chapéu
Estael Sias

É preciso repensar a previsão do tempo

Alertas de chuva extrema em São Paulo não ganharam o devido destaque na imprensa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Estael Sias

Meteorologista-chefe da MetSul Meteorologia e mestre em meteorologia pela USP

Em uma era de eventos extremos cada vez mais frequentes e impactos sociais, humanos e econômicos a cada dia maiores por conta das mudanças climáticas, o que só tende a piorar pelas projeções do IPCC ( Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), a hierarquia da meteorologia nos noticiários e a linguagem com que é transmitida precisa ser repensada.

Dias antes de Minas Gerais ser assolada pela chuva extrema do começo deste ano, os dois principais jornais mineiros estamparam em suas capas como manchete principal o alerta dos meteorologistas do que estava por vir. Autoridades se mobilizaram, e a população ficou ciente da gravidade do cenário que se aproximava. Se a chuva não pode ser evitada, os seus efeitos podem ser mitigados.

Os alertas de dias antes de que São Paulo enfrentaria um episódio de chuva extrema no fim de semana, contudo, jamais ganharam grande destaque nas capas dos maiores jornais paulistas. Cidades inundaram, pessoas morreram soterradas e várias perderam todos os seus pertences, tendo que recomeçar a vida de novo.

No mesmo fim de semana do evento extremo de chuva no estado paulista, nos Estados Unidos, onde há uma cultura meteorológica na mídia e na sociedade que nos falta, um ciclone bomba com nevasca histórica atingiu uma área em que vivem 70 milhões de pessoas. Dia após dia, antes da tempestade de inverno, os alertas estavam em destaque nas chamadas "escaladas" dos telejornais nacionais e recebiam enorme espaço nas emissoras locais de televisão norte-americanas que dispensam tradicionalmente enormes espaços para a meteorologia.

Mas não apenas o tempo dedicado à meteorologia nos noticiários do Brasil precisa ser revisto. Como os riscos são comunicados também. No Jornal Nacional, a chuva extrema em São Paulo foi prevista com antecedência. O Instituto Nacional de Meteorologia no seu distrito da capital paulista igualmente emitiu nota de alerta antecipando com correção a severidade do fenômeno. Os avisos foram dados.

Contudo, o que realmente a maioria das pessoas vai entender se é dito a elas que pode chover muito forte em razão de episódio da zona de convergência do Atlântico Sul e que os volumes podem passar de 200 mm? O público tem condições de interpretar as possíveis consequências do que se está a advertir?

Se a previsão era de chuva de 200 mm a 300 mm, era preciso dizer também ao público que tais volumes seriam capazes de inundar cidades, causar alagamentos repentinos, provocar deslizamentos, trazer desabamentos e oferecer risco à vida. É o que a Organização Meteorológica Mundial tem repetidamente pregado quanto à necessidade de comunicação de impactos.

A linguagem também é crucial para se estabelecer no público e a quem compete responder aos desastres um senso de urgência e gravidade, tarefa que recai em nós meteorologistas. A regra é a objetividade, e apenas prever o que vai acontecer, quando, por que e onde. Falta o "como". Não basta dizer que pode chover muito forte. Chuva de 100 mm é forte, assim como de 300 mm, mas as consequências serão muito piores —e desastrosas— em se precipitando 300 mm.

É preciso evoluir na comunicação da gravidade dos fenômenos. Na meteorologia dos Estados Unidos, tanto na do governo (Serviço Nacional de Meteorologia ou NWS) como na da mídia, expressões como "grave", "extremamente perigoso", "potencialmente catastrófico" e "situação de risco alto à vida" são comumente usadas.

No Brasil e na maioria dos países, seja nos informes dos meteorologistas ou na imprensa, há aversão a esse tipo de linguagem percebida muitas vezes como exagerada ou alarmista. Até que chegam os desastres e todos se chocam e se horrorizam com as imagens, e o que parecia exagerado se torna doloroso de enxergar.

O debate é longo, mas avançar passa também pela criação nas Redações de editorias de clima (o Washington Post é exemplo a ser seguido); incrementar a cobertura das mudanças climáticas e dissecar um tema árido ao se exibir como a realidade das pessoas será impactada; ampliar os espaços de meteorologia em telejornais locais, que contam com maior número de horas nas grades; a apresentação da previsão do tempo em televisão prioritariamente deve ser feita por profissionais meteorologistas que compreendem tecnicamente as causas e efeitos do que estão a informar; e passar de uma vez por todas a se enxergar a meteorologia como uma ciência e não apenas uma especialidade de conhecimento.

Todos os desastres climáticos recentes no Brasil, com custos de dezenas de bilhões de reais e elevado saldo de vítimas, foram alertados em tempo hábil de meses a dias antes pela ciência meteorológica. Casos da seca no Sul, as inundações na Bahia, as chuvas em Minas Gerais e em São Paulo, a geada que dizimou café e milho no último inverno etc. Os índices de acerto da previsão do tempo hoje no Brasil são altíssimos porque são usadas as mesmas ferramentas de prognóstico de modelos computadorizados empregadas nos Estados Unidos e na Europa.

Se na pandemia a palavra ciência ganhou tanta importância, é hora de, no clima, também ter muito maior atenção. Os extremos pioram, mas como lidamos com eles na prevenção, mitigação e comunicação, os avanços não ocorrem na mesma velocidade. Trata-se de um esforço multidisciplinar e de vários atores.

Com quem faz a ciência atuando na linha de frente da comunicação direta com o público e os meios de comunicação engajados nesta mudança de cultura e filosofia certamente avançaremos, nos preparando para o pior e torcendo pelo melhor, salvando vidas. Informação ostensiva, de rápida disseminação e com qualidade, é segura e eficaz em se tratando de desastres naturais.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.