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Thiago Thiago de Mello

Meu pai e o poder transformador da poesia

Devo a Thiago de Mello o gosto pela música, pelas letras e pela Amazônia

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Thiago Thiago de Mello

Doutor em ciências sociais, é compositor, cantador e educador

Tive um pai velho. Quando nasci, Thiago de Mello estava com 55 anos e vinha do exílio causado pela ditadura militar, contra a qual resistiu com o amor armado da poesia. Mas papai, que nos deixou aos 95 anos no dia 14 de janeiro, não era velho. Seu estado de espírito era o de um menino. Os cabelos brancos, as dores na coluna e os problemas cardíacos conviviam com seu pique para trabalhar, amar e viver a vida do modo como viveu: intensa e apaixonadamente.

As costas doíam, mas eram nelas que eu, menino, subia. Ele, de joelhos, sendo o cavalo; eu, o seu cavaleiro. Nadávamos no rio Andirá, no Amazonas; ele fazendo as vezes de boto, eu agarrado no seu cangote. Voávamos de ultraleve com Armando Nogueira. Ficava deslumbrado quando ele falava em público para multidões. Ou quando apertava a mão de gente importante, como a de Brizola, me apresentando ao então governador do Rio de Janeiro: "Este aqui, Leonel, é meu grande companheiro". Eu tinha nove anos, ficava todo orgulhoso.

O poeta Thiago de Mello toma banho no rio Andirá, em 2015
O poeta Thiago de Mello toma banho no rio Andirá, em 2015 - Rodrigo Sombra/Divulgação

Saíamos de táxi e, entre um samba antigo e outro que ele cantarolava batucando delicadamente com os dedos em minha perna, me contava as agruras e aventuras da luta armada no final dos anos 1960, quando ele foi preso e depois ficou clandestino. Nessas horas eu não entendia bem nem os sambas antigos nem o lance político, mas ele adorava cantar e contar, e nós éramos felizes com ele sendo meu herói épico que iria fazer a revolução com samba e poesia.

Devo a ele o gosto pela música, pelas letras e pela Amazônia. Ensinou-me os primeiros acordes no violão, a decorar poema de Drummond e a comer a cabeça do tucunaré (o olho, sobretudo) nas caldeiradas preparadas por ele com pimenta murupi e caldo de tucupi. Foi na floresta que passamos juntos a maior parte do nosso tempo. Lembro-me dele agora e sinto o cheiro do óleo de copaíba que ele passava quando eu tinha algum arranhão na pele. Ou de andiroba, para acabar com os piolhos. Tomávamos nosso trago e cantávamos juntos Cartola, Pixinguinha, Ary Barroso. Falava dos amigos Pablo Neruda, José Lins do Rego, Elizete Cardoso, Violeta Parra com uma intimidade que era como se eu mesmo os conhecesse. Ele dava vida a esses mitos da cultura nacional e latino-americana.

Nos últimos anos papai já não ia comigo para Barreirinha (AM). Seu quadro de saúde pedia que ficasse em seu apartamento, em Manaus. Sem ele por perto, tive que pôr em prática o que aprendi na grande escola amazônica que foi sua paternidade: respeitar os rios, saber pelo balançar das árvores se iria chover, ouvir os caboclos e suas histórias. Nunca me acostumei plenamente com sua ausência na paisagem do Paraná do Ramos. Parecia que a qualquer momento ouviria sua voz sábia de pajé antigo dizendo o que deveríamos fazer: "bater na água antes de entrar, para afugentar as arraias"; "olhar sempre pro chão pra ver se não tem cobra" ou "cuidado com as ondas deste rio, são perigosas".

Em dezembro fui ao Amazonas começar uma reforma na casa que ele construiu, há mais de 30 anos, em Freguesia do Andirá. A Casa da Poesia fica num paraíso verde à beira do rio e sofre nos últimos tempos com as tempestades, cheias e temporais, mas, sobretudo, com a saudade que sente do meu pai. Aprendi que as casas têm sentimento e também podem morrer de tristeza. Então, fui salvá-la. Remover madeira podre, espantar cupim, pôr telhas novas.

Mal sabia que, ao refazer escadas que já iam bambas, estava, na verdade, sonhando com novas alturas; ao trocar tábuas errantes do assoalho, era um novo chão que inventava, para pisar com mais segurança. Fui reconstruir para renascer. A reforma é a transformação da própria existência, pois, como meu pai —filósofo da selva— me ensinou, mudamos "em movimento sem deixar de ser o mesmo ser que muda, como um rio". Não era um trabalho físico, mas espiritual, o da reforma da casa.

Deixei as obras em andamento e fui visitar meu pai. Suas cuidadoras me contaram que nos últimos dias ele dizia meu nome, perguntava quando chegaria e falava que eu levaria um presente. Cheguei a tempo de lhe ofertar um adeus, um último concerto, com as canções que mais amávamos cantar juntos. No dia seguinte meu pai partiu, aos 95 anos de idade, indo cantar no mundo dos encantados. E eu fiquei aqui, para cantar para ele, cuidando da vida, que é a casa onde habitamos juntos.

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