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Nuno Coelho

Não há conferência sem política pública

Como debater discriminação étnico-racial se o próprio governo a promove?

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Nuno Coelho

Secretário-adjunto da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB, é membro dos Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APNs) e ex-conselheiro da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2014-18)

A realidade brasileira nos impõe algumas reflexões acerca da convocação da 5ª Conapir (Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial). Assinada pelo presidente da República, a conferência deve ocorrer entre 2 e 6 de maio sob o tema "Enfrentamento ao racismo e às outras formas correlatas de discriminação étnico-raciais e de intolerância religiosa: política de Estado e responsabilidade de todos nós".

A convocação causa surpresa. Afinal, para um governo que nas primeiras horas da gestão desmonta as políticas de Estado que justamente têm a tarefa de enfrentar o racismo e a discriminação —como o rebaixamento estrutural e orçamentário da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR) e o esvaziamento das representações da sociedade civil em seu conselho nacional após lideranças do movimento negro terem protocolado um pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro—, é algo, no mínimo, sui generis.

O governo que deveria fortalecer as políticas para os povos e comunidades tradicionais decretou o esvaziamento das funções da Funai e colocou na berlinda a demarcação de novas terras indígenas; pela portaria 1.223, transferiu da Fundação Cultural Palmares para a Diretoria de Governança Fundiária do Incra a coordenação do licenciamento ambiental em terras ocupadas por remanescentes de quilombos, criando um núcleo específico de licenciamento na Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas (DFQ). E, não satisfeito, nomeou para comandar a Fundação Cultural Palmares um presidente que responde por denúncias de assédio moral, perseguição ideológica e discriminação contra funcionários da instituição.

Com apoio de Bolsonaro, Sergio Camargo, um "negro de direita antivitimista e inimigo do politicamente correto", considera que os ativistas antirracistas são esquerdistas "mimizentos", como se a missão da Fundação Palmares não fosse justamente a de promover e preservar a contribuição cultural, histórica, social e econômica dos cidadãos negros para a sociedade brasileira.

Este mesmo governo faz ataques às comunidades tradicionais e povos étnicos, além de expressar seu racismo religioso, como a retirada da obra "Orixás", da artista plástica Djanira, do Palácio do Planalto.

As perguntas que ficam para a nossa reflexão são: como que diante de tantas contradições um governo nos chama para dialogar sobre o enfrentamento ao racismo sendo que ele próprio o incentiva? Debater sobre as outras formas de discriminação étnico-raciais e de intolerância religiosa que ele próprio promove por meio das estruturas de poder? Qual o compromisso deste governo com "a política de Estado e responsabilidade de todos nós" se ele próprio desestrutura essa política e afasta da mesa de diálogo a sociedade civil e os movimentos sociais?

O fortalecimento das relações Estado e sociedade por meio das representações do movimento negro, duramente conquistado, foi por água abaixo no atual governo. A quem o governo pensa que engana? Com a palavra, os que irão à 5ª Conapir.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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